O LEGIÃO URBANA é o QUEEN brasileiro. Sim. Ora, não faz sentido comparar o quarteto que teve Fred Mercury como porta-voz com o quarteto brasiliense. Não musicalmente, não tecnicamente. Ora, faria mais sentido, se é que comparações chegam perto de fazer algum sentido, comparar a banda dos Renatos (Russo e Rocha), do Dado e do Marcelo com os SMITHS (coisa que na verdade, justamente ou não, sempre aconteceu), ou mesmo com o U2, em sua primeira fase, pós-punk. Mas a afirmação que escolhemos começa a fazer algum sentido quando vemos o tanto de emoção que canções lançadas há décadas atrás ainda são capazes de emocionar multidões em uma turnê de reunião, mesmo que a voz em que nos acostumamos a ouví-las não possa mais pronunciar nada neste plano físico. É o caso do QUEEN, que leva às lágrimas milhares de pessoas ao se apresentar com uma nova voz e com o guitarrista e baterista da formação clássica. É o caso do LEGIÃO URBANA, que, também, leva às lágrimas milhares de pessoas ao se apresentar com uma nova voz e com o guitarrista e baterista da formação clássica, facilitando a escrita de pelo menos uma linha desta resenha (bastou copiar e colar a linha anterior).

O show deste sábado, 11, no Centro de Eventos do Ceará,  faz parte da turnê comemorativa dos trinta anos do primeiro álbum da banda, o homônimo “Legião Urbana”, hoje já beirando os 32. Apresentaram-se em Fortaleza os músicos Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, guitarrista e baterista da formação clássica do LEGIÃO URBANA, acompanhada por Lucas Vasconcellos (do duo LETUCE) na guitarra, Mauro Berman (também conhecido como Formigão, do PLANET HEMP) no baixo, Roberto Pollo, no teclado, e o ator e cantor André Frateschi, nos vocais, além de alguns convidados. Para iniciar a noite, um DJ tocava hits nacionais e gringos, principalmente das décadas de 80 e 90, período em que reinou a Legião.

Multidão foi à loucura com clássicos do Legião Urbana (Foto: Rafael Allan)

Multidão foi à loucura com clássicos do Legião Urbana (Foto: Rafael Allan)

Por volta de 11h, o DJ interrompe o set para fazer o sorteio de algumas bolsas de estudo em uma escola de línguas onde houve venda de ingressos. O púbico aproveitou o momento sem música para gritar repetidas vezes.

“Fora, Temer. Fora, Temer. Fora, Temer”. Pode-se dizer que foi aí que, mesmo antes da banda subir ao palco, começou o show da LEGIÃO URBANA. Seria curioso ver o que Renato Russo diria do cenário atual. Ou melhor, talvez não. O apoio que uma parcela da juventude de hoje dá a políticos como o execrável Jair Bolsonaro, ou a forma como os combatentes da corrupção e do fisiologismo (que dominava na era PT, sejamos claros) calam-se hoje um mês após o Golpe, fariam Renato Russo morrer de vergonha e desgosto.  “Estejamos alertas. Porque o terror continua. Só mudou de cheiro. E de uniforme”. Ele tinha dito, em 1987. Que vergonha dele eu teria se ele pudesse ver que até poucas semanas atrás, havia quem defendesse uma intervenção militar. Felizmente, aqueles  presentes no show, tinham ainda nos corações o espírito contestador da Geração Coca-Cola, mesmo aqueles que pertenciam à Geração Coca-Cola Diet, os que ainda eram crianças ou sequer eram nascidos antes daquele triste 11 de outubro de 96.

Foto: Rafael Allan

Foto: Rafael Allan

Sigamos para o show. Pontualmente, à meia-noite, horário divulgado nas redes sociais, sobe ao palco o LEGIÃO URBANA. O ambiente estava completamente lotado, gerando inclusive a expectativa de um retorno da banda na mesma turnê. Não havia espaço sequer nem para rodas punk. Há de se notar que a dimensão das duas pistas, premium e comum, pareciam invertidas, uma vez que o frontstage parecia ser realmente maior que a metade do espaço. Nesta primeira parte da apresentação foram tocadas (na ordem) todas as músicas do primeiro álbum do LEGIÃO URBANA, que também atendia pelo próprio nome da banda, com André na maior parte dos vocais, mas também revezando com Dado e Bonfá. Assim, André cantou o hit “Será”, passando a bola para Dado cantar “A Dança” e recebendo novamente a incumbência de cantar “Petróleo do Futuro”. Em “Ainda É Cedo”, é a vez de Bonfá cantar. A canção recebe um solo de Dado (que obviamente evoluiu bastante desde a época em que ficava experimentando na guitarra enquanto Renato Russo dizia “continua que tá legal”), mas é o solo de Vasconcelos que é mais rock and roll. E ao contrário do que acontecia muitas vezes (com Renato e também nessa turnê), a canção não recebeu nenhum trecho de qualquer outra. A certeza de cantar “Gimme Shelter”, como no “Musica Para Acampamentos” ficou só na vontade mesmo.
Foto: Rafael Allan

Foto: Rafael Allan

Adiante, anunciam:  “A gente vai cantar uma música sobre a televisão. A TV tem mostrado um espetáculo dantesco”. A resposta do público é mais um coro “Fora Temer, Fora Temer, Fora Temer”, ao que a banda responde, “Fora todos eles”. E a canção é “Teatro dos Vampiros”, na voz de Dado, com letra atualizada. “Meus amigos todos estão tomando Rivotril”. Sim, o tempo passou. Isso é refletido na plateia. Muitos na casa dos trinta, quarenta anos. Mas o público da LEGIÃO também se renova. Há ali muitos jovens emocionados que sequer estavam na barriga de suas mães quando Renato Russo se despediu desse mundo.
Anunciando “Índios” como a última canção do set, Bonfá a descreve como uma canção que “Fala do Rio Cocó. Lembra Caicó.
Lembra Werner Herzog. Fala sobre todos os nossos índios, que foram todos mortos” e canta uma parte da canção.
O bis é só desculpa, escada para que o público entoe o “É Legião, É Legião”. Só poder gritar a plenos pulmões esse mantra já valeu a ida ao Centro de Eventos. Com o retorno da banda ao palco para “Faroeste Caboclo”, Dado relembra a duração da canção. Ora, Dado, fique tranquilo. Ainda caberiam “Metal Contra as Núvens” e “A Montanha Mágica” até. Ao fim, André pede uma bandeira que alguém do público segurava, exibe, se fez, faz de máscara. Curiosamente, ele talvez nem tenha percebido que seu rosto ficara no centro da bandeira, ladeado por Bonfá e Dado, exatamente onde Renato estaria. Havia significado naquela imagem.
É tempo de terminar o show, apresentar a banda. Ao falar de Frateschi, Dado (ou Bonfá, já não dá pra ter certeza) afirma: “ele está conosco não por acaso, mas por uma grande circustância do tempo, da sincronicidade, dividindo o palco como dividiu o camarim quando tinha 11 anos”. André devolve dizendo “Essa banda formou o meu caráter. Sou um legionário, como todos vocês aqui”.
“Vamos lembrar quem fomos e quem somos e tentar mudar o que seremos” é o que é dito antes de “Perfeição”, uma das melhores letras de Renato, talvez uma das melhores letras da música brasileira. E ainda rolou dedicatória a la congresso no domingo do Impeachment de Dilma: “Pela minha esposa Maria Eustáquia, pela minha cadelinha Fifi, pela Puta que Pariu”. E ainda no tom de crítica social que sempre esteve presente no cancioneiro legionário, “Que País É Este” fecha o show, com o verso-resposta “É a porra do Brasil”, que podemos até considerar que já faz parte da música.
Há o sentimento que faltou algo? Há. Claro. Óbvio. Há mais adjetivos para exprimir tamanha obviedade? Não tem como não haver. Respeitosamente, Renato é insubstituível. Mas é celebrável. E foi isso que milhares de pessoas fizeram em Fortaleza. É isso que milhares de pessoas tem feito nesta turnê em comemoração aos trinta anos, aos mais de trinta anos de LEGIÃO URBANA. Felizes foram aqueles que puderam ver Renato Russo, Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e Renato Rocha juntos e ao vivo. Mas, se os Renatos morreram, suas músicas jamais morrerão. E as sementes plantadas pela LEGIÃO URBANA no mundo que “anda tão complicado” continuam crescendo através de Dado e Bonfá, através dos CIDADÃO INSTIGADOS e dos GAROTOS SOLVENTES, mas através também de várias outras bandas cabeçudas que apareceram no Ceará e no Brasil, dos SELVAGENS À PROCURA DE LEI, das MAFALDA MORFINA, das THRUNDA, dos REITE, e inúmeras outras, neste e em outros estados, fazendo rock em português, falando para adolescentes e jovens adultos, não calando diante da política suja de Brasília e de cada uma de nossas prefeituras, mas falando também, muitas vezes e principalmente, de amor. Sim, Renato Russo é insubstituível. Freddie Mercury é insubstituível. John Bonham é insubstituível. Mas, sim, são celebráveis. E continuamos celebrando todo dia. Às vezes mais, como naquele sábado, 11 de junho.
Resenha de Daniel Tavares/ESPECIAL PARA O CEARÁ & ROCK

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Aflaudisio Dantas

Repórter com passagem pelo jornal O Povo. Como membro da equipe de esportes do jornal, atuou na cobertura da Copa do Mundo, em 2014. Também fez coberturas sobre os principais clubes do futebol cearense e escreveu sobre outros esportes. É fascinado por rock e por contar e ouvir boas histórias

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