Foto: Agência Brasil/ Arquivo

Foi durante o brevíssimo tempo em que morei sob o mesmo teto que minha mãe biológica, que Belchior se apresentou a mim pela primeira vez. Era o LP “Alucinação”. Ela o ouvia freneticamente junto com um disco de Amado Batista e outro de Bartô Galeno, que tinha a música “Malena” (minha predileta dele). Só uns 20 anos depois descobri que esse álbum de Bartô era o clássico “No Toca Fitas do Meu Carro”.

Aquela figura bigoduda e avermelhada, estampada na capa com letras garrafais, que eu não entendia o significado- pois ainda não sabia ler- me impactou de imediato. Era 1993, eu tinha seis anos de idade, e lembro que eu adorava balançar na rede ouvindo a melodia de “Sujeito de Sorte”. Anos depois, ainda criança, tive um vislumbre do que aquele homem significava. Vi na TV anúncio pomposo de um show de Belchior em Campina Grande-PB, a uns 350 km de distância de Cajazeiras-PB, cidade onde nasci e me criei. Era anunciado como o show do ano. Lembrança marcante porque eu não entendia o motivo de, no anúncio, “Belchior” ser escrito com CH e não com Q. Dilemas de um recém alfabetizado. Tinha uns oito ou nove anos de idade.

O disco que ajudou a mudar o rumo da vida de muita gente

Cresci e Belchior se tornou uma lembrança distante. Mas como um bom amigo, sempre pronto a nos dizer algo relevante numa hora difícil, ele retornou ao meu cotidiano. Foi ficando até fazer parte da minha vida. A primeira vez que voltei a escutar o disco “Alucinação”, já sem a ingenuidade da infância e armado com o amargor da vida adulta, foi como andar de avião, sentir medo e não ter nenhuma mão para segurar. Cada verso era uma lenhada certeira no quengo. Verdades duras, porém necessárias.

“Faço o destino com o suor de minha mão.

Bebi, conversei com os amigos ao redor de minha mesa

e não deixei meu cigarro se apagar pela tristeza.”

Este trecho de “Não leve flores” foi uma injeção de ânimo que me ajudou a sair de uma onda de pessimismo aparentemente invencível.

“Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar

Que o homem é pra mulher e o coração pra gente dar

Mas a mulher, a mulher que eu amei

Não pode me seguir não”

“Fotografia 3 x 4” me ensinou a dar de ombros para as coisas que estão na casa do sem jeito, juntar os cacos de nossa reserva moral e seguir em frente.

Belchior, sem saber de minha existência, estendeu-me a mão, ensinando-me a andar sozinho pelo mundo novamente. Em cada música, uma história. A cada verso, uma mágoa vencida. A cada palavra, um alento. No final do disco apenas resignação e esperança contra um amor mal sucedido, o fantasma do desemprego e as contas a pagar que não cessavam.

Belchior é como um irmão mais velho, ou um pai que deseja ver o caçula da família bem encaminhado na vida. Ele fala intimamente para todos nós que o admiramos. Conhece mais de nossas vidas do que nós mesmos, sempre com soluções difíceis, porém possíveis. Ele nos mostra que a vida pode ser muito pior, mas que mesmo assim, viver ainda é melhor que sonhar.

É por isso que Belchior é eterno. A despeito do seu desejo por reclusão e anonimato, ele, através de sua obra, se tornou uma entidade que transcendeu a condição humana. Enquanto houver angústia, amor, desejo, sonhos e dor, haverá Belchior para nos mostrar que “deixar sempre de lado a certeza e arriscar tudo de novo com paixão” é a melhor decisão das nossas vidas.

 

About the Author

Aflaudisio Dantas

Repórter com passagem pelo jornal O Povo. Como membro da equipe de esportes do jornal, atuou na cobertura da Copa do Mundo, em 2014. Também fez coberturas sobre os principais clubes do futebol cearense e escreveu sobre outros esportes. É fascinado por rock e por contar e ouvir boas histórias

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