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Apesar de ter alguns dos diretores mais competentes do cinema brasileiro contemporâneo, o Ceará tem pouca visibilidade. Gente como Guto Parente, como Petrus Cariry, como Ivo Lopes Araújo, se reinventam constantemente no fazer cinematográfico, mas seguem à margem do cinema comercial — dilema esse do mundo inteiro. Cabe a nós, do Ceará, lutarmos para escancarar as raras janelas que o eixo Rio-São Paulo nos abre.

“Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois” é uma nova obra a galgar um espaço merecido. Ao lado de outras nove produções independentes brasileiras, o filme cearense concorre ao chamado Prêmio Netflix, que dará a oportunidade de assistir ao filme a mais de 80 milhões de usuários no mundo todo.

A votação popular segue aberta até o dia 3 de outubro no site oficial. Até o momento, o filme está em terceiro logo atrás dos ótimos “O Último Cine Drive-in” e “Califórnia”, que talvez tenham mais apelo popular. A diferença é de menos de mil votos. E “Clarisse” merece não só por ser cearense.

A crítica abaixo lista os méritos estéticos e dramatúrgicos, mas também não é só isso. Queria destacar, para além disso, a linguagem de gênero do filme. Uma história familiar, de raízes, antepassados e fantasmas, mas ancorada no cinema de horror. É único entre os dez candidatos. Para além disso, Petrus representa uma quebra entre os outros diretores indicados — todos ou do eixo Rio-SP ou de Pernambuco.

“Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois” deve chegar aos cinemas no dia 10 de novembro. Então, provavelmente entrará em salas de cinema alternativo e merece algumas semanas no Cinema do Dragão – Fundação Joaquim Nabuco. É mais do que tínhamos anos atrás, mas é menos do que o cinema contemporâneo cearense merece.

Petrus, Guto Parente, Pedro Parente, Karim Aïnouz, Rosemberg Cariry, Ivo Lopes Araújo, merecem mais do que salas lotadas. Merecem que seus filmes sejam vistos, discutidos. Espero que, por público ou júri, “Clarisse” seja gabaritado para entrar no serviço de streaming e que milhões se aventurem na casa fantasmagórica de memórias familiares que Petrus propõe. E espero que essa janela que o filme possa abrir seja uma nova voz para o audiovisual cearense, nordestino e brasileiro.


Crítica: CLARISSE E OS FANTASMAS DISSECADOS

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Mesmo dentro de uma linearidade de roteiro que oferece certa simplicidade e didatismo, Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois é uma obra que se move entre dois tempos, esmiuçando dois sentimentos de perda conflitantes. Terceiro longa do talentoso cineasta cearense Petrus Cariry, o filme volta a tratar a morte como tema central – com efeito ora devastador, ora redentor para quem fica.

Protagonizado brilhantemente por Sabrina Greve, que assume o papel-título, Clarisse se centra no reencontro da protagonista com seu moribundo pai, em uma casa lotada escura e cheia de passado. Enquanto espera os momentos finais do patriarca, Clarisse revisita os ecos de outra perda, um irmão menor ainda na infância. O cruzamento do tempo passado com o presente é desenlaçado de forma quase sempre simbólica, trazendo mais densidade e tensão ao encontro de pai e filha.

Analisado dentro do contexto das outras duas obras anteriores da chamada “trilogia da morte” de Petrus, Clarisse aposta em duas novidades. A primeira é o cenário urbano, que se ancora em uma família burguesa rica – talvez até uma oligarquia do Sertão. A outra é o suspense fantasmagórico, que segue paralelo ao drama denso. Petrus, dessa vez, quase assume o gênero horror, que já é tateado nas obras anteriores. Dessa vez, o medo é sentido numa direção de fotografia tão bela quanto incômoda.

Cineasta dos mais rigorosos tecnicamente, Petrus – que também assina a fotografia do longa – se centra em uma série de planos simétricos, nos quais os dois lados da imagem se espelham. Dessa forma, ele amplia o estranhamento e sobe o tom de tensão. Ao mesmo tempo, ele mais uma vez insiste em filmar os protagonistas de costas, representando que a maior parte do roteiro acontece fora do que os personagens exprimem.

Outra característica forte de Clarisse é a simbologia trabalhada em objetos cênicos. Na casa, animais empalhados são vistos e feitos a todo momento. Cascas vazias e sem alma, que representam Clarisse e o pai, mesmo décadas após a perda do irmão. A protagonista também sofre sangramentos intensos, como se os sentimentos transbordassem de sua fisionomia distante. O sangue é ainda um paralelo com a relação junto ao pai, que ganha novas escarras a cada cena, como um réquiem rumo ao descanso final. Essas cascas vazias, dissecadas, são contrapostas pela vivacidade do passado, com fantasmas bastante presentes.

Como grande parte do roteiro, assinado por Rosemberg Cariry, Firmino Holanda e Petrus, só se resolve fora da tela e dentro dos personagens, a obra é hermética em alguns pontos. Ao mesmo tempo, ela não menospreza o público, capaz de intuir o simbolismo sugestionado e construir as relações entre família, passados e presente. Muito dessa intuição é guiada pela atuação de Sabrina Greve, que contrapõe tédio e ação, dor de perda e ódio da culpa.

Em suma, “Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois” é um híbrido de drama e thriller que leva a “trilogia da morte” de Petrus Cariry a um final apoteótico e sedimenta a já vistosa carreira do cearense.

Cotação: nota 6/8

Crítica publicada originalmente no Vida&Arte, do O POVO, antes da exibição do longa-metragem no Festival Cine Ceará.

http://blog.opovo.com.br/cinemaas8/filme-de-petrus-cariry-concorre-ao-premio-netflix/

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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