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Para bem ou para mal, o Marvel Studios nunca fez um filme, de fato, ruim — talvez “Thor” (2011), né? “Doutor Estranho”, de Scott Derrickson, é mais um no rol de bons longas do chamado “Universo Cinematográfico da Marvel” (MCU, para os íntimos). Como história de origem, a obra apresenta bem todos os mocinhos, dá uma rápida pincelada nos motivos do vilão principal, antecipa uma ameaça maior e deixa um gancho para sequências. Só que tudo isso a gente já viu 13 vezes desde 2008.

Tudo começou com “Homem de Ferro” (2008), de Jon Favreau. Um playboy rico, genial e ególatra se vê uma situação-limite e acaba encontrando a justeza em seu coração. Agora, oito anos depois, (re)conhecemos o dr. Stephen Strange. Neurocirurgião genial que escolhe a dedo os procedimentos que vai performar. Mais interessado na própria imagem do que na vida dos pacientes, ele sofre um acidente e praticamente perde o movimento das mãos. Na busca por uma cura, ele — citando eu mesmo –, “encontra a justeza em seu coração”.

O arco de Strange nesse seu filme introdutório é, em suma, o mesmo de Tony Stark no terceiro filme de sua sequência. No famigerado “Homem de Ferro 3” (odiado por muitos e que, para mim, é dos melhores da Marvel), o protagonista se vê uma situação em que o amadurecimento e a humildade são os únicos caminhos. Para quem já viu “Doutor Estranho”, isso soa familiar. Cuidado, pode soar como spoiler. O ápice do filme, com toda a noção de looping, é a melhor conclusão de um filme da Marvel. Strange absorve quem ele é, cresce com lições e usa isso contra seu aqui-inimigo. Mas, mesmo com a qualidade, soa derivativo. é uma trajetória pessoal que já vimos antes. Soa mais do mesmo. E nem vou comentar que arrogância é algo que sobra também ao Thor, porque já parece implicância com o asgardiano.

"Vai, teia"

“Vai, teia”

Dito isto, fica claro que a grande força do MCU é seu “calcanhar de Aquiles”. O que importa é a criação, a padronização, não a originalidade. Existe um padrão, uma fórmula ainda mais restrita do que a das animações da Disney nos anos 1950 a 1980. Note-se já a escolha dos diretores. Derrickson tinha uma carreira pouco relevante, ligada a esquecíveis filmes de horror. Favreau mostrara certo talento para comédia, mas não muito mais. Os irmãos Russo (“Capitão América”; “Guerra Civil”) eram praticamente desconhecidos. James Gunn (“Guardiões da Galáxia”) tinha como ápice da carreira dirigir adaptações em live-action de Scooby-Doo — é, aquelas. Kenneth Branagh (“Thor”) é conhecido por adaptar Shakespeare — logo, sabe seguir orientações de um roteiro e ser respeitoso.

A grande exceção seria Edgar Wright, dos incríveis “Todo Mundo Quase Morto” (2004). Seria ele o responsável pela adaptação de “Homem-Formiga” (2015), até abrir mão da direção por “diferenças criativas”. Coincidência? O filme, aliás, podia ser um grande exemplo de longa de assalto (ou “heist”), mas precisa de lutas, vilões e clichês repetitivos da Marvel. O estúdio vai melhor quando aposta em brincar com gêneros, como na ópera espacial “Guardiões da Galáxia” (2014), mas essa liberdade parece limitada.

Assim sendo, “Doutor Estranho” é um filme seguro. Lá tem o humor, que surge como contraponto ao excesso de seriedade dos filmes da Warner/DC. Lá há o drama humano. Lá há uma busca dos justos por salvar o universo. E existe ainda uma série de ótimos elementos novos que finge que “Doutor Estranho” é novidade.

Anciã (Tilda Swinton) e Mordo (Chiwetel Ejiofor) Photo Credit: Jay Maidment ©2016 Marvel. All Rights Reserved.

Anciã (Tilda Swinton) e Mordo (Chiwetel Ejiofor)// Crédito: Jay Maidment/Marvel

O primeiro e mais visível é o visual. Com uma direção de arte meio emprestada de “A Origem” (2010), o mar de cores e formas ajuda a simplificar as noções de multiverso lançadas pelo filme. E ainda é lindo. Ao mesmo tempo, a trama funciona em dois níveis diferentes, seja para quem quer levar o roteiro a sério ou quem não quer pensar. O conceito de energias místicas pode ser tratado como simples magia ou como uma ciência mais complexa. Funciona. A subversão de alguns personagens dos quadrinhos também é equilibrada, fugindo de estereótipos de asiáticos com Wong (Benedict Wong) e Ancião (Tilda Swinton, em versão com outro gênero e outra nacionalidade). De quebra, ainda fizeram de um personagem caucasiano (Barão Mordo), em um negro (Ejiofor). E ainda tiraram o maniqueísmo de “barão” do nome.

Mas a verdade é que tudo isso é cosmético. É uma embalagem nova para uma velha trama de bem contra o mal. Não há supresa — e não digo isso por conhecer os personagens dos quadrinhos. Há, porém, potencial. O arco de Mordo cria potencial para uma sequência. A noção de forças místicas aumenta a expectativa para “Os Vingadores: Guerra Infinita” (2018) — algo que as cenas pós-crédito ajudam a ampliar. Mas, no fim do dia, essas sequências após o fim do filme definem como funciona o Universo Cinematográfico da Marvel. É tudo uma bola de neve: o que importa é o próximo filme. Se ela se arriscar mais, pode acertar em cheio. Mas pode também estragar o histórico perfeito dela. Soa “Doutor Estranho” o suficiente para vocês?

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: se fosse novo, era 6/8, mas como é requentado, fica com um 4/8

Ficha técnica
Doutor Estranho
(EUA, 2016), de Scott Derrickson. Ação/Aventura. 12 anos. 115 minutos. Com Benedict Cumberbatch, Rachel McAdams, Chiwetel Ejiofor, Mads Mikkelsen e Tilda Swinton.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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