Gildo (Júlio Andrade), Luzimar (Irandhir Santos) e a ponte

Um time de futebol, uma ponte e uma cicatriz para toda a vida. Movendo-se entre dois tempos, o passado e o presente, “Redemoinho”, estreia de José Luiz Villamarim no cinema, mantém o rigor visual do especialista em televisão e adiciona um discurso sofisticado que se equilibra entre o dito e o não dito. Baseado no romance  “O Mundo Inimigo”, de Luiz Ruffato e com roteiro de George Moura, o longa nacional é uma obra forte, equilibrada, sobre o quanto é difícil fugir do passado.

No filme, os amigos de infância Luzimar (Irandhir Santos) e Gildo (Júlio Andrade) se reencontram mais de 20 anos após um evento traumático os separar. O primeiro fez sua vida das migalhas da cidade de Cataguases, no interior mineiro, enquanto o outro buscou completude em São Paulo, com carro do ano, esposa e filhos. Em pleno Natal, eles se encontram por acaso e uma cerveja vai se estendendo indefinitivamente.

Existem dois fatores fortes, marcantes, que se destacam na obra. O primeiro dele, mais evidente, é a forma como o passado é mostrado de forma nebulosa. O tal evento traumático é mostrado duas vezes em flashbacks, mas nenhum dos participantes é nomeado ou a ocorrência esclarecida. Ao mesmo tempo, Luzimar e Gildo claramente anseiam por um fechamento da questão, mas nenhum tem coragem de citar o fato ao outro. Cabe ao espectador tatear por respostas.

Um reencontro pode trazer mais mal que bem

A outra questão que se impõe com força é o caráter sensorial da obra, que guia a forma como buscamos respostas. Primeiro o som que invade as cenas e tem em Luzimar, que possui um grau de surdez, um ponto de inflexão. Quando o protagonista tira o aparelho auditivo, ouvimos um zumbido constante. É como se ele não fosse surdo, mas usasse o objeto para abafar essa voz constante na própria mente. Há ainda rimas visuais, que esclarecem desde a sequência inicial o quanto a grande ponte vermelha da cidade é essencial no desenrolar da trama. Tudo isso é muito mais intuído do que dito.

Inteligentemente, Villamarim consegue fugir do caminho fácil de enfrentamento entre os dois protagonistas, que, dessa forma, transformariam a obra em um burocrático longa de diálogos.

Aos poucos, a trama vai se explicando, se abrindo ao espectador. Por mais que o roteiro perca em polimento, sendo duro principalmente em momentos de tensão, há uma inteligência ao se explorar a forma como o trauma afetou outras pessoas. A conversa ao lado do campo de futebol, por exemplo, se desenrola com uma força descomunal. Gildo cita o time do grupo de amigos na infância e pergunta para Luzimar sobre o destino de cada. O amigo, então, cita alguns e solta que um deles já morreu. “De quê?”. “Cachaça”, responde, deixando no ar que o alcoolismo podia também ter nascido do trauma de infância. Talvez Gildo saiba, mas a opção de deixar isso fora de cena faz a trama crescer.

“Redemoinho” é também, em muitos momentos, um drama sobre relacionamentos fraturados. Não há equilíbrio entre Gildo e sua mãe, Marta (Cássia Kis). Há uma distância entre Luzimar e sua esposa, Toninha (Dira Paes). A opção de não ter filhos é emblemática, bem como o fato de Gildo visitar a mãe em Cataguases e não levar a mulher e os filhos. Tudo isso também não é dito. Há um silêncio, quebrado “três ou quatro vezes por dia” pela passagem de trem pela cidade. São sons de memória, de lembrança, de dor.

Há uma distância crescente entre os protagonistas e os outros personagens

O elenco de apoio, aliás, é um acerto atrás do outro. Somando-se às atuações da dupla de protagonistas e mostra um rigor na direção. Os coadjuvante, no entanto, têm pouco tempo de tela para dizer o que deviam. Embriagados de cerveja e de si, Gildo e Luzimar os ignoram, fogem e o filme perde a chance de dar mais alguns passos. O que, de certa forma, faz sentido para uma trama sobre amargor, frustração. Sobre a cicatriz do passado.

Destaque-se ainda Zunga (Demick Lopes), um dos presentes no trauma de infância e que se quebrou de forma irreparável. Assim, Villamarim estabelece o limite máximo (de sanidade) para seus dois protagonistas e, de certa maneira, até poderia perdoá-los. Ou será que o ato de infância, que condenou Zunga e Marquinhos, não oferece perdão para Gildo e Luzimar?

Cotação: nota 6/8

Ficha técnica
Redemoinho (BRA, 2017), de José Luiz Villamarim. Drama. 100 minutos. Com Irandhir Santos, Júlio Andrade, Dira Paes.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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