Guddu (Abhishek Bharate) e Saroo (Sunny Pawar)

A expressão “baseado em fatos reais” é candidata a maior muleta do cinema mundial. A Sétima Arte praticamente nasceu da magia e dos truques de um mágico, Georges Méliès, no fim do século XIX. Ou seja, é da mentira que o cinema de ficção se move. Ou pelo menos assim prefiro. Hoje, o selo “baseado em fatos reais” é uma outorga para histórias humanas inacreditáveis, no melhor estilo “bom demais para ser verdade”. Nada errado nisso. Só que “Lion: Uma Jornada Para Casa”, de Garth Davis, é mais uma prova do tanto de clichês que circundam esse cinema-verdade.

Baseado no livro “A Longa Estrada para Casa”, autobiografia de Saroo Brierley, “Lion” conta a história de um menino de 5 anos do interior da Índia e que se perde do irmão mais velho. Ao dormir em um trem, ele viaja 1,6 mil quilômetros até chegar a Calcutá, metrópole indiana. Vindo de uma vida miserável em uma cidade distante, ele não fala bengalês, língua local, sendo apenas fluente em hindi. Ou seja, além de ser uma das milhares de crianças perdidas na Índia, ele ainda tem dificuldade de comunicação.

Sunny Pawar é incrível. Mas olha a fotografia na estética do fofo

O primeiro ato do filme, com Saroo (Sunny Pawar) e o irmão Guddu (Abhishek Bharate) é carregado com eficiência pela jovem dupla de protagonistas. Tanto quanto linear, a história consegue mostrar a desigualdade do país com a segunda maior população do mundo e a miséria que assola a maior parte daquele povo. As questões sociais, no entanto, são tratadas de forma básica, corrida, já que a trama quer esmiuçar todos os percalços de uma criança de 5 anos perdida em uma cidade imensa. Daí, vemos um descartável encontro com um pedófilo para mostrar uma perda de esperança, só para o arco se renovar em uma série de momentos nos quais soa que Saroo pode ter um final feliz.

Bom, eventualmente a mão de destino pesa e Saroo é adotado por uma amável família australiana, Sue (Nicole Kidman) e John (David Wenham) Brierley. Ali, ele cresce seguro e distante da Índia, até os pais adotarem Mantosh, uma criança bem mais atormentada que o protagonista da história. Passam-se os anos, Saroo conhece novos amigos e ostenta o orgulho de ser australiano. Mas falta algo, etc. Aquele velho clichê da epifania tardia. Estimulado pela namorada, Lucy (Rooney Mara, num papel completamente descartável), ele inicia uma busca pela mãe e irmãos perdidos.

Dev Patel sempre eficiente

O ponto que talvez fosse o mais interessante da história, a busca em si, é completamente enfadonha. Dev Patel, que interpreta o Saroo adulto, traz até carisma para um personagem crescentemente antipático, mas as decisões ora soam conveniente, ora parece randômicas. Há ali bons elementos: as duas mães, o irmão traumatizado, a infância fragmentada. Só que tudo só visa lágrimas. O final, previsível, é encontrado em forma de uma das soluções mais fáceis do cinema atual. Soa até um merchandising do Google Earth. Pode até ter acontecido assim, mas cabe ao cinema mentir para tornar a história mais interessante. Dispenso compromissos com a verdade.

A história da Saroo, bonita, única e simples, está ali. Mas a doçura adicionada nos clichês talvez cause cáries. De tão apelativo, o filme recorre até ao uso de imagens dos personagens reais, de forma a emocionar. E consegue. A presença deles é a coisa mais real de tudo aquilo. Só que quem nos emociona são Saroo, Sue e Kamla, não Garth Davis.

Cotação: nota 3/8

Ficha técnica
Lion: Uma Jornada Para Casa
(AUS/EUA/ING, 2016), de Garth Davis. Drama. 118 minutos.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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