Jenny (Adèle Haenel) e Julien (Olivier Bonnaud), o estagiário

Está nos melodramas realistas a fortuna narrativa dos filmes dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne. Os veteranos roteiristas e diretores belgas têm uma capacidade única de imprimir sentimento em histórias banais, em leituras do cotidiano do corrido mundo atual. Medo e culpa, naturalmente, são dois dos temas mais recorrentes em nossos dias. Em “A Garota Desconhecida”, os Dardenne apostam numa trama de crime que flerta ora com o melodrama, ora com o suspense e, ao mesmo tempo, discute imigração e uma sociedade de anônimos.

Era um dia normal de trabalho na clínica onde a doutora Jenny Davin (Adèle Haenel) trabalha. Em uma noite extenuante, a campainha toca e a médica impede o estagiário, Julien (Olivier Bonnaud), de atender depois do horário de trabalho. A vida segue. Jenny aceita uma proposta de emprego com que sonhava, mas mantém vínculos com o trabalho antigo. Até que a polícia a procura pedindo as imagens da câmera da clínica e ela descobre quem apertou a campainha durante a noite. Uma moça jovem, negra, perdida, procurava refúgio e estava visivelmente assustada. A mesma pessoa foi encontrada morta, em uma obra poucos metros dali.

Dr. Jenny cuida de seu paciente, Bryan (Louka Minnella)

No melhor estilo Brás Cubas, Jenny é tomada por uma ideia fixa. Ela não podia deixar a “garota desconhecida” virar uma indigente. Ela, então, embarca em uma investigação autônoma sobre os momentos finais da moça, algo que pode representar risco para si, seus pacientes e até desconhecidos. O ponto central do filme é contrapor a frieza da doutora na noite da morte da garota para o quanto ela se torna mais empática, humana, aos poucos. O problema é que, já na introdução da personagem, Jenny não parece fria ou distante — o foco no profissionalismo soa deslocado, forçado.

Os Dardenne, que também assinam o roteiro do longa, costuram a investigação com a rotina de Jenny. Maníaca por trabalho, ela atende o celular remotamente dentro do próprio carro. É tudo muito corrido, puxado, mas ainda assim há espaço para o vazio da culpa. Com uma foto da desconhecida em mãos, ela aborda desconhecidos, pacientes e até parte em viagem a uma cidade vizinha. Há um crescente de tensão. Indigentes entre nós mesmos, os humanos pouco parecem se importar com a busca obsessiva de Jenny — e quem se importa parece ter uma agenda própria de ações.

Há um crescente de ação, que se dissipa em momentos específicos

A forma isolada em que Jenny é construída, no entanto, dissipa parte desse suspense. “A Garota Desconhecida” falha como thriller, principalmente por trabalhar com focos muito específicos de tensão. Parece que o medo e a culpa não escorrem de uma sequência a outra. Os arroubos de movimento, por sua vez, flertam mais com o exagero, o melodrama desmedido que funciona bem quando autônomo, mas que fica deslocado em meio a uma trama de suspense. Parece tudo fora do tom, ainda que ligeiramente.

Se pouco funciona como cinema de gênero, “A Garota Desconhecida” se mantém firme na principal qualidade dos Dardenne. Mais do que estética, mais do que interpretações, eles mostram dramas de emoções humanas. E a culpa é uma das principais forças-motrizes dos nossos tempos, corridos, extenuados. Talvez uma trama mais limpa de excessos trouxesse o poder que o drama social pedia. Ainda assim, um filme de Jean-Pierre e Luc é sempre bem-vindo.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 4/8

Ficha técnica
A Garota Desconhecida
(La Fille Inconue, BEL/FRA, 2016), de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne. Drama/Suspense. 113 minutos.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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