Kevin/Dennis/Barry/Patricia/Hedwig (et cetera) (James McAvoy) e a dra. Karen Fletcher (Betty Buckley)

Um bom diretor de cinema precisa de explicações lógicas para cada plano que filma. Soa banal, mas filmar uma psicóloga indo a um museu encarar uma pintura de Paul Cézanne após uma sessão de psicoterpia confusa revela mais sobre os objetivos do longa do que muitas curvas no roteiro. Com esse vislumbre rápido de uma referência artística, M. Night Shyamalan revela que, por trás de seu horror fantástico, existe um afã de compreensão dos limites da psiquê humana.

“Fragmentado” tem suas protagonistas, mas gira em torno de um fascinante antagonista — ou antagonistas, para ser mais preciso. Kevin (James McAvoy) é diagnosticado com Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), as antigas “personalidades múltiplas”, já retratado de forma brilhante em obras como “Psicose” (1960), “Clube da Luta”, “As Duas Faces de um Crime” (1996) e na série “United States of Tara” (2009 – 2011). Note-se que entre quase todos os exemplos, esse diagnóstico representa uma virada na trama, um plot twist. “Fragmentado” puxa o tema como ponto de partida.

James McAvoy no melhor estilo Norma Bates

Kevin coabita a mesma mente com o metódico Dennis, a maternal Patricia, o menino de 9 anos Hedwig e outras 19 ou 20 personalidades. Ele (ou eles), então, decide raptar três garotas “impuras” para servir de alimento da “Fera”. Isso tudo, claro, é construído de forma cuidadosa, mas incerta. Duas das três garotas, Claire (Haley Lu Richardson) e Marcia (Jessica Sula), são exemplos perfeitos de vida equilibrada, livre de traumas. Já Casey (Anya Taylor-Joy) esconde do mundo um passado mais sombrio, mas que também se desvenda aos poucos. A forma como o roteiro se desenrola parte dos diálogos incertos com Dennis, Patricia ou Hedwig que, cada um de uma forma, desvelam as motivações por trás do rapto.

Apesar de se ancorar principalmente em Casey, “Fragmentado” parece derivar da obra-prima “O Silêncio dos Inocentes” (1991) pela forma como se configura como estudo de personagem de um vilão em tratamento psicoterapêutico. Se no filme de Jonathan Demme, o psiquiatra Hannibal Lecter é ora conselheiro, ora antagonista, em “Fragmentado” a psicóloga Karen Fletcher é quem pinta os diferentes tons de Kevin e seus alter-egos. Ela, à revelia de outros profissionais, trata o TDI como o próximo passo na evolução humana. Ela não vê em Kevin uma pessoa inferior, doente, mas alguém que se diferenciou a partir de eventos traumáticos até transcender conceitos básicos de construção pessoal. Dentro do exagero proposital do filme, isso pode significar a capacidade de alterar a própria biologia, fazendo, por exemplo, um alter-ego ter diabetes e outros, não, mas também impõe uma noção moral mais arbitrária, que subverte o papel de são e insanos. De certa forma, o que Shyamalan faz é esmiuçar a dimensão dos traumas em dois personagens e no quanto os fenômenos ocorridos no meio os diferencia, os conduz.

Além de McAvoy, Anya Taylor-Joy também brilha

Em linhas gerais, Shyamalan busca subverter as psicopatologias de uma forma semelhante ao que o filósofo Maurice Merleau-Ponty definia a arte de Cézanne. O pintor ficou conhecido pela ambiguidade de seus objetos, que se perdem em contornos e abrem o questionamento sobre os limites do real e da representação. A referência não só abre um leque novo de interpretações sobre “Fragmentado”, como também mostra uma evolução de M.Night Shyamalan como roteirista, ao buscar uma área complexa de conhecimento para incutir maior complexidade ao antagonista “Fragmentado”.

Robusto e fascinante, “Fragmentado” é mais um acerto de um diretor que, sob vaias, ousa criar produtos únicos. Com um elenco espetacular (principalmente James McAvoy, que interpreta oito alter-egos) e uma fotografia que ajuda a imprimir um retrato mais difuso dessas personalidades, “Fragmentado” é um estudo psicológico de personagem robusto e quase real. Falta polimento no roteiro, como é próprio de Shyamalan, mas é ótimo ter o indiano de volta ao circuito de grandes filmes.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 6/8

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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