Texto de João Gabriel Tréz, publicado originalmente no caderno Vida&Arte, do O POVO

Na primeira exibição de Martírio em Fortaleza, que ocorreu no dia 14, dentro da Mostra Retrospectiva-Expectativa do Dragão, o diretor do documentário, Vincent Carelli, lembrou uma passagem do Festival de Brasília de 2016, onde apresentou o filme em competição. Ao pegar um táxi na cidade, ouviu na rádio um locutor anunciando seu documentário como “um filme chamado ‘Martírio’, com quase três horas”. A descrição pouco convidativa não deixa de ser real, mas esqueceu de mencionar que, na verdade, as “quase três horas” – mais precisamente 2h40min – são um dos registros audiovisuais mais urgentes, potentes e fortes sobre e para a história do Brasil. O documentário está em cartaz no Cinema do Dragão, dentro da Sessão Vitrine Petrobras.

“Martírio” se debruça sobre a luta por terra e o genocídio dos Guarani Kaiowá, povo indígena que vive no centro-oeste brasileiro. A temática, delicada, confronta poderes e acirra ânimos. Recentemente, por exemplo, o samba-enredo de 2017 da escola Imperatriz Leopoldinense, Xingu – o Clamor da Floresta, que homenageia as tribos indígenas da região, foi alvo de ataques de associações do agronegócio. ‘Martírio’, corajosa e frontalmente, também não se furta em tomar posição contra os interesses do setor.

O filme faz um apanhado histórico da tribo e da repressão por ela sofrida através de documentos, relatos, registros feitos pelo próprio diretor durante os anos 1980, além de novas filmagens. A partir dos Guarani Kaiowá, Martírio lança um olhar geral sobre a resistência dos povos indígenas e o tratamento dado a eles pelos governos ao longo da história.

Ao contrastar as falas de políticos-empresários com relatos da luta indígena, o filme cria um paralelo discursivo que muito revela sobre a situação. Em dado momento, por exemplo, o espectador é apresentado ao “Leilão da Resistência”, evento promovido por fazendeiros e empresários para arrecadar fundos para a contratação de segurança privada a fim de “proteger as propriedades” de “invasões” indígenas. Em oposição, vemos em outro momento um ataque intimidador e violento, registrado em vídeo pelos índios, a uma ocupação indígena.

Em meio aos documentários, existem bons documentos de denúncia que não funcionam como filme, e bons filmes que não passam grandes discursos. Carelli consegue, aqui, provar a força do dispositivo audiovisual como meio de expressão política ao unir a denúncia necessária ao bom cinema. Por meio da tomada de posição, do envolvimento sincero com a causa e do respeito à voz de quem ouve, Martírio emana urgência, pulsa humanidade e pede para ser visto.

(joaogabriel@opovo.com.br)

Ficha técnica
Martírio
(BRA, 2016), de Vincent Carelli. Documentário. 160 minutos.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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