Com nove longas-metragens na carreira, o inglês Guy Ritchie consegue pender entre obras únicas e marcantes, como “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (1998), e filmes absolutamente indefensáveis, como “Destino Insólito” (2002). O que há de inegável é a assinatura, principalmente estética, do diretor. A montagem ágil, com flashbacks entrecortados por ação, é uma marca forte de um cineasta evidentemente urbano. E eis que ele é escolhido para fazer “Rei Arthur: A Lenda da Espada”, um épico medieval que reconta (pela milésima vez) o mito fundador do povo britânico: o ciclo arturiano (ou “Matéria da Bretanha”). Uma escolha ousada que acaba sendo o único trunfo de um filme que mira virar franquia sem oferecer substância.

Ao centro, Arthur (Charlie Hunnam). Nos lados, personagens cujos nomes o filme evitará dizer

Em 1953, Richard Thorpe dirigiu “Os Cavaleiros da Távola Redonda”. Em 1963, a Disney já fazia sua adaptação em animação, “A Espada Era a Lei”. Temos até a paródia “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado” (1975) e mais de duas dezenas de adaptações das histórias do rei Arthur e de Camelot – a mais recente de Hollywood foi o péssimo “Rei Arthur” (2004). Só na TV, tivemos duas adaptações recentes: “Merlin” (2008) e “Camelot” (2011). Ou seja, é muita competição. A aposta inicial é uma origem mais marginal de Arthur (Charlie Hunnam), que surge como um dos trambiqueiros típicos do cinema de Guy Ritchie. Após o assassinato dos pais, nas mãos do tio Vortigern (Jude Law), o rei por nascença acaba descendo rio abaixo em um bote e é criado em um bordel. É, eles foram na metáfora bíblica mesmo.

Após um breve supercut que mostra a ambição e o crescimento de Arthur em meio à sarjeta, o longa parte para estabelecer o mito da espada. Excalibur foi forjada pelo mago Merlin, a partir do cajado do rei da sua raça, como forma de vencer o tirânico mago Mordred. O rei Uther Pendragon (Eric Bana) a usa para matar o inimigo, mas é traído e morto pelo irmão. A espada acaba presa a uma pedra, da qual apenas o herdeiro dos Pendragon a tiraria. O primeiro ato, de introdução ao conflito, é onde Guy Ritchie consegue imprimir seu ritmo. Só que aí é onde começam os poréns.

Apesar de tudo, a tal da Excalibur tem uns truques legais

Mirando a possibilidade de uma longa e lucrativa franquia, o roteiro faz questão de esconder o nome de quase todos os personagens. Os melhores amigos de Arhtur, por exemplo, são chamados como Bolacha (Neil Maskell) e Pau Molhado (Kingsley Ben-Adir) – algo que claramente está lá para disfarçar a possibilidade de um deles ser um famoso cavaleiro da távola redonda. Pior, “Rei Arthur: A Lenda da Espada” consegue a proeza de não dar um nome para a única personagem feminina decente do longa. A personagem de Astrid Bergès-Frisbey só é chamada de “A Maga”, provavelmente para indicar que ela possa vir a ser a Rainha Guinevere no futuro. Mas quem disse que haverá um futuro? Tanto trabalho para incluir um romance dos mais insossos…

O tratamento do filme dedicado às outras mulheres é ainda pior. Duas surgem do nada e viram sacrifícios humanos de Vortigern. Sem qualquer menção a casamento, filhos ou outra família que não Arthur e Uther, elas surgem e para serem mortas. As prostitutas só servem para dar uma pretensa profundidade ao protagonista. Há ainda a nobre Maggie (Annabelle Wallis), cujo destino é desconhecido. E pior, há Igraine (Poppy Delevingne). Dela, não sabemos o nome e, pelo que vemos no filme, nem temos certeza se é a mãe do protagonista ou uma ama de leite. Aí, cabe a quem pesquisa o nome da personagem no IMDb reconhecer o nome da fada Igraine e encaixá-la no ciclo arturiano. É surreal que, em pleno 2017, uma produção de US$ 175 milhões ignore completamente a presença feminina.

Se estão de preto, certamente são vilões

O que salva “Rei Arthur” de ser um desastre total é a direção de Guy Ritchie, com uma trilha musical moderna e, digamos, folk, e uma montagem excessiva, mas gostosa de se ver. O bom elenco, com Charlie Hunnam, Jude Law, Djimon Hounsou e Aidan Gillen, consegue trazer leveza em um primeiro ato divertidíssimo. Mas quanto mais densidade entra na história, mais o filme afasta o interesse. Elevada a enésima potência, a jornada do herói hesitante fica repetitiva e até paradoxal, já que a ambição é a primeira característica de Arthur a ser introduzida. No mais, o roteiro, de Joby Harold, Guy Ritchie, Lionel Wigram e David Dobkin, acaba desperdiçando um design de produção grandioso e uma abordagem única de uma das histórias mais conhecidas do mundo.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 3/8

Ficha técnica
Rei Arthur: A Lenda da Espada
(King Arthur: Legend of the Sword, EUA, 2017), de Guy Ritchie. Aventura. 12 anos. 126 minutos.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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