Olha, vou começar sendo sincero e elogiando a disposição da Netflix em ter uma adaptação de um romance regionalista nordestino como seu primeiro filme brasileiro. E é importante pontuar o ineditismo disso, mesmo diante dos muitos, muitos, muitos problemas de “O Matador”, de Marcelo Galvão. Baseado na obra “O Cabeleira”, do cearense Franklin Távora, o filme retrata duas gerações de assassinos no cangaço nordestino, naquela versão nacional dos faroestes norte-americanos. O problema é que a obra já surge tão datada quanto o conceito de romance regionalista nordestino, com uma produção que pende para a condescendência ao tentar pintar um sertão recheado de crueldade.

Cabeleira, na casa de Blanchard

Com uma narração em off ininterrupta (assim como a trilha musical), “O Matador” abre com um pai de duas crianças contando a história de dois matadores para dois sujeitos mal-encarados em um rincão do Nordeste. Algo que mira na Sherazade, do livro de contos “As Mil e uma Noites”, mas que acaba prejudicando todo o andamento do longa. O narrador, então, apresenta o temível Januário Sete Orelhas (Deto Montenegro), um mortal assassino, cego na ambição de acumular turmalina paraíba, maior riqueza desse Nordeste entre o realismo e o mitológico. Em uma noite de fome e de chuva, o matador encontra um bebê, que decide salvar e criar. Dentro da lógica do estereótipo de sertão bruto, o bebê nem um nome ganha.

Já na vida adulta, o tal bebê vai para a cidade em busca de Sete Orelhas. Lá, com os talentos de matador polidos pela convivência com o pai adotivo, ele assume o lugar de Januário como jagunço do francês Monsieur Blanchard (Etienne Chicot) e assume o nome de Cabeleira (Diogo Morgado). O impulso emocional do filme, portanto, é a relação entre Cabeleira e Sete Orelhas. Só em a profundidade é substituída por violência gráfica. E pior, violência graficamente mal acabada. “O Matador” não trabalha, não pole nenhum de seus personagens. Tudo é violência non-sense. São mulheres indefesas, homens violentos e um tratamento absolutamente superficial a tudo. Marcelo Galvão não é lá um diretor conhecido pela regularidade. Mas esse faroeste do cangaço parece ter sido feito no automático.

A infância de Cabeleira

Os aspectos mágicos surgem raros e não funcionam. O realismo passa longe. O design de produção parece a todo momento esquecer que se trata de uma obra de época, que se passa no começo do século XX. É irritante ver a tipografia que não combina, a linguagem que não era da época, o visual que só aposta no soturno. Não há um respiro de humanidade, de cor, de beleza ou emoção nesse cangaço caótico. O máximo que há é a afinidade do narrador-pai com os dois filhos. Mas os diálogos artificiais beiram o amadorismo, com crianças que não falam como crianças. É um caos absoluto, que passa ainda pela dicção de Diogo Morgado como Cabeleira, atrapalhada ainda pelo som pouco demarcado no filme.

Para uma obra que trabalha os rincões, com pessoas à margem da sociedade, “O Matador” podia ainda ter um tratamento mais decente às minorias. O problema do personagem de Igor Cotrim, por exemplo, não são os trejeitos efeminados. A questão é que a afetação parece querer remeter à ascendência francês do filho de Monsieur Blanchard. E é ainda mais incômodo que o tal antagonista surja como estuprador de homens. É uma imagem que não deveria existir. Além disso, o filme ainda faz uma indicação que dá a entender que todos os asiáticos são parecidos – algo que é claramente racista, por mais que possa se justificar diegeticamente.

Cabeleira e a terceira geração de matadores

“O Matador” incomoda. E por todas as razões erradas. A ausência de empatia com os personagens não surge das relações fragmentadas do contexto da época, mas da inaptidão de estabelecer esses vínculos. É uma obra datada, uma emulação de western falha e sem as características próprias que tornam os faroestes de cangaço tão ricos. Só que é bom que se olhe para o Nordeste e que se produza filmes originais no Brasil. O mérito de “O Matador” é apenas social, nunca fílmico.

(andrebloc@opovo.com.br)

Filme disponível na plataforma online Netflix.

Cotação: nota 1/8.

Ficha técnica
O Matador
(BRA, 2017), de Marcelo Galvão. Faroeste. 99 minutos. 18 anos.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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