Esse espaço foi reservado a Isao Takahata, duas semanas após a morte do gênio do cinema, para sanar uma injustiça histórica. O japonês talvez pudesse ser visto como o maior nome da animação no mundo caso seu melhor amigo e parceiro não lhe tivesse, vez ou outra, ofuscado. Por vezes, se fala no Studio Ghibli como a casa de Hayao Miyazaki. Mas não existiria Miyazali, não existiria Ghibli sem Isao Takahata, cuja morte deixou a arte da animação muito mais pobre. Ele morreu no último dia 5 em Tóquio (Japão), aos 82 anos, vítima de um câncer de pulmão.

“Túmulo dos Vagalumes” (1988), obra-prima de Takahata

A obra-prima de Takahata é um dos filmes mais brutais da história: Túmulo dos Vagalumes (1988). Um drama da Segunda Guerra Mundial, a animação conta a história de duas crianças que lutam contra a fome e abandono para sobreviver aos bombardeios de aviões norte-americanos. É, em suma, uma daqueles “desenhos” que claramente não são para crianças. É um filme que a pessoa vê uma vez, se acaba de chorar, promete nunca mais ver, mas também nunca esquecer. No contexto de bombardeios norte-americanos à Síria, Túmulo dos Vagalumes se renova. É mais do que um filme sobre uma guerra – é um drama de sobreviventes. O filme é baseado na obra semi-autobiográfica de Akiyuki Nosada sobre o bombardeio da cidade de Kobe, em 1945. O conto virou ainda filme live-action em 2005 e 2008.

Curiosamente, a obra-prima de Takahata é ligada intimamente a um dos filmes mais emblemáticos de Hayao Miyazaki: Meu Amigo Totoro (1988). Ambos os longas completaram 30 anos de lançamento comercial na última segunda-feira, 16, e foram financiados com a mesma verba. Basicamente, o dinheiro que sobrou de Túmulo dos Vagalumes foi usado para animar Totoro. O lançamento foi feito em cabines duplas, com exibição dos dois filmes em sequência. Só que enquanto a animação de Miyazaki é a obra mais leve e infantil de todos os longa do Studio Ghibli, o de Takahata é o mais pesado, o que afastava o público mais jovem. O mershandising e o carisma do gigante Totoro, no entanto, garantiram o sucesso dos filmes que ajudaram a sedimentar a carreira dos dois mestres japoneses.

Takahata na época do lançamento de “O Conto da Princesa Kaguya”

A carreira de Takahata, no entanto, não se resume a Túmulo dos Vagalumes. O apuro social e o experimentalismo gráfico deram o tom da maioria da produção do cineasta, que tem também uma longa trajetória na TV (animes). O traço flutuante do mestre Takahata, com uma finalização de arte impecável, se destaca em obras como Only Yesterday (1991), Pom Poko: A Grande Batalha dos Guaxinins (1994) e o estranhíssimo Meus Vizinhos, os Yamadas (1999). Ao Ocidente, no entanto, o filme mais familiar do cineasta japonês é O Conto da Princesa Kaguya (2013), obra que rendeu a única indicação ao Oscar da carreira de Takahata, em 2015.

Kaguya é um caso a parte. Uma das animações visualmente mais impactantes dos últimos anos, o filme é uma adaptação moderno para um clássico do folclore japonês: O Conto do Cortador de Bambu, cuja origem data para o século XVI. Na obra de Takahata, o foco sai do pai, o cortador de bambus, para a filha, a misteriosa princesa Kaguya, encontrada no broto de uma planta. Rapidamente, ela cresce e precisa se impor ao seu trágico destino.

Do folclore japonês, Takahata extrai o criticismo sobre a sociedade patriarcal e sobre o machismo. Tudo isso com uma arte de tirar o fôlego. Porque Takahata era assim. Ele seduzia com a arte e fulminava com a consciência social. E o mundo é muito menos brilhante agora que perdemos mais um mestre.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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