É papel das artes discutirem temas simples e complexos. Por consequência, é comum ver obras consideradas difíceis de serem digeridas, ou apenas ruins, dependendo do julgamento e de quem a recebe. Tal pensamento se aplica ao Cinema e pode ser visto em Nu, longa britânico lançado em 1993. Por meio das andanças e contravenções de um protagonista repulsivo, o filme traz uma Londres tão decadente quanto seus personagens.

Dirigido e escrito por Mike Leigh, a produção traz um protagonista longe de ser uma pessoa considerada decente. Johnny (David Thewlis, o Lupin da saga Harry Potter), após estuprar uma mulher, foge de Manchester para Londres, onde acaba na casa da ex-namorada, Louise (Lesley Sharp). Lá, se envolve com a amiga de Louise, Sophie (Katrin Cartlidge), com quem desenvolve um relacionamento abusivo e que culmina em mais um estupro. A partir de então, o espectador acompanha o desenrolar de alguns dias na vida de Johnny, todos marcados por violência e reflexões acerca de trivialidades do cotidiano.

A violência sexual é marca recorrente durante toda a duração do filme. Na falta de uma palavra melhor, Nu é um longa controverso. A forma como os estupros são apresentados demonstram o quanto o crime era relativizado 25 anos atrás. Em Nu, a violência sexual se caracteriza como um fator da personalidade de Johnny e Jeremy (Greg Cruttwell), magnata que se utiliza do dinheiro e aparência para cometer atrocidades com mulheres. Na visão de 2018, tal representação no longa é problemática. Estes pontos unidos ao aspecto lowlife dos personagens se compreendem como a intenção de Mike Leigh em mostrar os problemas da sociedade londrina da época.

Por mais que o realizador se utilize do humor de maneira eficiente em diversos momentos, o clima geral do filme é de uma Londres suja e quase sem a presença do sol. Por essa razão, quase todos os momentos em que se acompanha Johnny em ambientes exteriores se passam durante a noite, enquanto os diurnos ocorrem entre quatro paredes. É importante ressaltar que o aspecto cômico não visa tornar o protagonista uma figura empática. A estética de Nu se torna semelhante a outros filmes do período, como Trainspotting (1996) e Kids (1995), que também trazem outros olhares de metrópoles e protagonistas marginalizados pela sociedade.

Para retratar um cotidiano tão violento, Leigh se vale do uso de uma paleta azul e melancólica em boa parte do filme. Em momentos mais intensos, os planos fechados mostram a intensidade do olhar dos personagens, uma técnica eficiente pelas ótimas atuações dos protagonistas. Nesse ponto, quem se destaca é Katrin Cartlidge, por construir uma Sophie que carrega as marcas de todas as agressões que sofreu na vida. Por mais horrendas que sejam as atitudes de Johnny, o trabalho de David Thewlis é exemplar. O britânico desenvolve maneirismos e toda uma cadência vocal para o protagonista, que faz longos monólogos sobre suas percepções da vida. Tal aspecto é realçado na cena em que o protagonista encontra o segurança noturno de um prédio, e ao seu lado reflete acerca até mesmo de Nostradamus.

Falecida em 2002, Katrin Cartlidge é um dos pontos mais altos do longa

Após tantos anos de lançamento, revisitar uma obra como Nu é importante tanto para conhecer a estética dos trabalhos de Mike Leigh, quanto para ter contato com uma obra complexa. As nuances dos personagens, aliadas aos seus comportamentos criminosos e deturpados, resultam em um filme forte para determinadas audiências. Apesar de não possuir um status cult como outros longas do período, Nu é uma experiência relevante para quem deseja explorar uma vertente menos popular do Cinema.

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Hamlet Oliveira

Jornalista. Louco por filmes desde que ficava nas locadoras lendo sinopse de filmes de terror. Gasta mais dinheiro com livros do que deve. Atualmente tentando(sem sucesso) se recuperar desse vício.

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