Momento duplamente interesante para mim e para os leitores do DISCOGRAFIA. Esta entrevista com Caetano Veloso, realizada por email em 27 de maio de 2009, foi minha primeira entrevista como repórter do Jornal O POVO. Meu nervosismo e apreensão diante do desafio de entrevistar um ídolo de muitos, acabou me fazendo perguntar mais do que deveria. No entanto, pude perceber que Caetano se mostrou disponível e atento a cada questionamento e/ou provocação. Isso é muito bom quando acontece. Todo mundo já começou um dia e o resultado gigantesco era também uma vontade de tirar todas as dúvidas que acumulei ao longo de minha vida sobre a carreira do baiano. Enfim, o motivo da entrevista foi o lançamento do disco Zii e Zie em Fortaleza. O show aconteceu dia 29 de maio de 2009, no Siará Hall. Como quem não envelhece nunca, Caetano mostrou seu repertório ao longo de quase duas horas, encantando a casa lotada. Daquele show, uma música me impressionou particularmente. Foi Lapa, onde o ele mostra as semelhanças e o seu pelo Rio de Janeiro e pela Bahia. Acompanhem a entrevista.

DISCOGRAFIAQual a ligação entre o título e o conteúdo de Zii e Zie?

Caetano – Procurei um título que não tivesse nada a ver com as ideias do disco. Queria  alguma coisa enigmática. E que fosse em italiano! Gozado é que achei uma perfeita. E que termina sugerindo coisas a respeito da música e da poesia. “Tios e tias” é o que muitos de nós somos. E é como todos somos chamados pelos meninos que pedem grana nos sinais de trânsito.

DISCOGRAFIA Como funcionou a troca de influências entre você e a Banda Cê durante a produção do disco?

Caetano – Já vimos da experiência de Cê, onde tudo era feito com clareza e rapidez impressionantes. Pedro (Sá, guitarra), Ricardo (Dias Gomes, baixo) e Marcelo (Callado, bateria) sempre entendem tudo o que digo e têm riquezas a acrescentar. Sempre me surpreendem: há dois dias, fui falar em Panamérica, o livro de José Agrippino de Paula, no camarim, e Marcelo revelou conhecer o romance muito bem. Ele me disse que leu o que eu digo sobre o livro em Verdade Tropical e foi procurar. Lendo, achou incrível. Com a música também é assim: tudo a que eu me refiro eles já conhecem bem – além de conhecerem coisas que desconheço.

DISCOGRAFIA Você diz no seu blog que David Byrne achou difícil gostar de Zii e Zie à primeira audição. Você concorda com ele?

Caetano – Como poderia concordar? Nunca tive uma “primeira audição” desse disco. Fui compondo, cantando ao vivo, discutindo no blog; depois, gravei laboriosamente e refiz umas dez vezes a ordem em que as canções iriam. Então não dá pra ouvir como quem não conhece. Mas entendo o que David sentiu. Ele só gostou de Perdeu depois de ouvir muito Por quem e Lobão tem razão (uma canção extremamente bonita, que aqui no Brasil fica ofuscada pelo anedótico de ser uma resposta ao Lobão). Já o produtor e dono de selo independente Bob Hurwitz adorou Perdeu de cara – e mais do que de todo o resto, de que ele também gostou. Ouvidos estrageiros podem dar sinais interessantes. Mas gosto do disco como quem gosta de um filho.

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DISCOGRAFIA Como você compara “Cê” e “Zii e Zie”? Existe um preferido?

Caetano – Zii e Zie é mais brasileiro, mais barroco. tinha uma poética muito anglo-saxã. Foi uma conquista para mim – e o barroquismo de Zii e Zie é pós-. Antes de o disco Zii e Zie sair (sobretudo antes da estreia do show), eu achava o melhor. Agora já não sei.

DISCOGRAFIA Como tem sido gravar e viajar com um grupo de apenas três músicos após anos tocando com bandas bem maiores? Isso tem mudado a sua forma de compor?

Caetano – Combinei com Pedro Sá de armar uma banda assim porque queria fazer um repertório em que meu modo de compor se modificasse. foi o resultado. A banda que foi criada para isso permeneceu e, em vez de seguir mais para dentro do mundo “indie rock”, desejei voltar aos nomes, cores e temas recorrentes em meu trabalho. Canto canções de 1967 ou de 1978 no show e isso se encaixa perfeitamente com o novo repertório. Com o era diferente: eu juntava Sampa, Desde que o samba é samba ou Leãozinho, sucessos “chapa-branca”. No show do Zii e Zie  a bandaCê entra em canções queridas mas não “oficiais” da minha carreira. Em todos os casos, o trio funciona de modo miraculosamente claro, deixando as compisções límpidas e nítidas. Já trabalhei com bandas de tamanhos diferentes: da orquestra completa de Fina Estampa e A Foreign Sound à banda de 4 figuras de Transa (sem falar nos shows só de violão). A Outra Banda da Terra tinha 5 elementos. A bandaCê é um power trio que tem poderes que vão muito além da denominação.

DISCOGRAFIA Seu disco segue uma estética do rock e este último busca referências no samba. Quem são seus ídolos nestes dois ritmos?

Caetano – Jorge Ben é meu ídolo nos dois gêneros. Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, João Gilberto, Caymmi, Martnália, Dona Ivone Lara e mais um mundo de gente são ídolos meus na seara do samba. Os Beatles, Os Mutantes, Little Richards, Rolling Stones, Chuck Berry, Nirvana, Nirvana, Police, Talking Heads, Barão Vermelho, Ultraje a Rigor, Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Paralamas do Sucesso, Café Tacuba, DNA, Ambitious Lovers e não muita gente mais são ídolos meus na seara do rock.

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DISCOGRAFIA O rock sempre esteve presente na sua obra. Desde a Jovem Guarda, passando por Cazuza e Nirvana. Como você avalia este gênero hoje e quais artistas tem chamado sua atenção?

Caetano – Gosto do TV on the Radio, do Radiohead, Wilco, Animal Collective. São todos rockeiros nascidos do prestígio que o gênero ganhou a partir dos anos 60. Acho curioso que justamente o gênero mais desprezado até então tenha se tornado o mais nobre. Esses novos artistas que citei (entre outros) levam adiante essa valorização e as responsabilidades que ela acarreta, sem chegarem a ser tolos quanto o lugar respeitado que ocupam.

DISCOGRAFIA O que achou da experiência de escrever um blog? Pretende repetí-la?

Caetano – Gostei muito. Desejo sim fazer mais coisas na internet. Ainda não sei o quê.

DISCOGRAFIA Segundo o blog Coffee Breakz, você é cronicamente incapaz de fazer um mau disco. “Nem quando se esforça”. O que você achou da recepção do público aos seus últimos discos?

Caetano – Não sabia que o Coffee Breakz tinha posto isso sobre mim. Muito engraçado. Quando será que ele acha que eu mais me esforcei para fazer um mau disco? Na verdade eu não concordo com o elogio, embora me alegre: como disse meu filho Moreno, eu não gosto de nada. Sempre fiz discos precários e insatisfatórios. Estou felicíssimo com o modo como os mais recentes (que são um pouco melhores) têm sido recebidos.

DISCOGRAFIA Outro elemento sempre importante na sua obra é o cinema. O que muda na hora de compor para um filme ou um personagem?

Caetano – Compor para personagens de filmes libera o autor. Eu não faria uma canção como Coraçãozinho se não fosse por Tieta do Agreste (o filme).

DISCOGRAFIA Quem é o melhor compositor de trilhas sonoras e qual a melhor trilha na sua opinião?

Caetano – O melhor eu suponho que seja Bernard Herman. Victor Young também é fabuloso (o tema de Sansão e Dalila é uma obra-prima). Mas o meu favorito é Nino Rota: o mistério, a delicadeza, a sugestividade, tudo. E não é só nos filmes de Fellini: Rocco e seus irmãos e O Leopardo, de Visconti; O poderoso Chefão, de Coppola; Romeu e Julieta, de Zefirelli – todos têm trilhas sublimes. A trilha mais bonita, no entanto, acho que é a de Um corpo que cai, de Herman para Hitchcock.

DISCOGRAFIA Como vai ser a trilha sonora do filme (de Mauro Lima) Reis e Ratos?

Caetano – Compus apenas uma canção, que já foi arranjada (por Daniel Jobim) e gravada (com Bebel Gilberto cantando) em cena do filme. Chama-se mesmo Reis e Ratos e é muito bonita. Fiz com o coração. Gosto muito de Mauro Lima.

DISCOGRAFIA No ano passado foi relançado o filme documentário Doces Bárbaros. Gostaria de saber sua opinião sobre o filme, aquele período da sua carreira e o repertório daqueles shows.

Caetano – O repertório é espantoso: Gil e eu fizemos aquilo tudo em quinze dias. São muitas músicas fortes e bonitas. Mereciam ter sido gravadas em estúdio, como eu e Gil queríamos. O filme é bom. Tem imagens inesquecíveis. Gal e Bethânia cantando Esotérico, as reações de Gil no julgamento em Floripa, mil coisas. E agora o som ficou melhor. Era um período bom. Gil e eu paramos as turnês que estávamos começando para atender ao chamado de Bethânia para fazer esse trabalho em grupo. Ela tinha tido um sonho e nos chamou. Daí fizemos uma paródia de grupo. É tudo muito anos 70. Nossa decisão de dar ênfase à mitologia do candomblé foi uma jogada tipicamente romântica. Tem muita coisa que parece mais inocente do que é. Havia ironia. Mas muito amor entre os membros do grupo.

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DISCOGRAFIA Você tem acompanhado a carreira dos outros Bárbaros?

Caetano – Sou irmão de Bethânia e compadre de Gil e de Gal. Vejo mais Gil e Beta do que Gal. Acho que todos confirmam sua grandeza na maturidade. Bethânia é a mais ativa. Mas Gal agora parece ter encontrado um tom despretensioso, sem ansiedade, de tocar a carreira dela que resulta muito bem. Tenho trabalhado com Gil e com Bethânia de vez em quando. E tenho desejado muito fazer algo especial com Gal.

DISCOGRAFIA Rita Lee lhe dedicou a música Homem vinho, em que diz que “o tempo te lapida”. Como a passagem do tempo tem influenciado o seu trabalho?

Caetano – Fico muito grato a Rita pela poesia dela. O tempo ajuda, é sempre tempo de treinamento: vamos ficando mais adestrados para nossa função. Mas o tempo desgasta também. Não tenho queixas quanto ao que consigo com meu trabalho, mas não me sinto nem de longe satisfeito. E não acho que a satisfação seja inpossível.

DISCOGRAFIA O que vem após Zii e Zie?

Caetano – Ainda não sei.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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