Por Domitila Andrade (domitilaandrade@opovo.com.br)

O filho do seu Manoel parecia predestinado, desses que o caminho começa a ser traçado antes de nascer. A família foi de Pernambuco para São Paulo e a saudade se impregnou na casa dos Jeneci. Foi o sentir falta que fez Marcelo ouvir música e foi seu Manoel que incentivou o primeiro dedilhar no piano. Quando viu, o menino já tinha crescido e saído de casa para acompanhar músicos famosos. Tocando piano e sanfona, Marcelo Jeneci tocou com Chico César, Arnaldo Antunes, Vanessa da Mata e Cidadão Instigado.

Começou a compor e logo a primeira canção, Amado, foi parar na novela das nove na voz de Vanessa, ainda teve outra, Longe, que o sertanejo Leonardo gravou e também virou trilha de folhetim. Decidiu que era hora de gravar um CD solo e Feito Pra Acabar, o primeiro rebento, foi citado nas principais listas de melhores discos de 2010. Sucessos de crítica e público, Jeneci e sua Felicidade chega hoje, 21, a Fortaleza, para seu primeiro show na Cidade, encerrando a programação do IV Festival UFC de Cultura. O POVO conversou com o cantor e multiinstrumentista.

DISCOGRAFIA – Queria que a gente começasse você me contando um pouco de como foi o início do teu interesse por música, e como esse interesse passou a ser levado a serio, visto como profissão.

Marcelo Jeneci – A minha vida de músico aconteceu como vida de jogador de futebol que criança vai jogar em campinho de várzea, adolescente passa a treinar num time ou outro, e na fase adulta nem percebe que aquela diversão passa a ser um trabalho. Comigo foi assim. Desde os 15 anos eu recebo pra trabalhar por música. Eu cresci numa atmosfera de muita saudade, de música, de música para matar a saudade, muita TV aberta, muita cultura popular. Acho que eu fui absorvendo essa linguagem, e essa vocação para música acabou compatibilizando essas duas coisas.

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DISCOGRAFIA – Você toca sanfona e a sua primeira foi doada pelo Dominguinhos. Por ser a sanfona um instrumento muito usado em ritmos nordestinos, como foi que você virou roqueiro e escolheu esse caminho alternativo?

Jeneci – Acho que pelo fato de eu ter morado a vida inteira em São Paulo, que é uma cidade que comporta vários gêneros musicais. Minha família é pernambucana, mas não existia essa pressão para que eu tocasse ritmos nordestinos. E quando eu comecei a tocar sanfona eu pensei: “Nunca vou conseguir tocar como esses caras”. Daí, segui outro caminho e a minha música tem influência da música indie argentina, do rock. Eu uso a sanfona nisso. Porque o instrumento é livre, é aberto para ser usado da maneira como a gente quiser.

DISCOGRAFIA – Quais outros instrumentos você toca? Começou mesmo com a sanfona?

Jeneci – Não, a sanfona foi um dos últimos, comecei a tocar por necessidade. Pela vontade de sair pra fazer música e surgir essa oportunidade para alguém que soubesse tocar sanfona e piano (aos 17, Jeneci fez parte da banda de Chico César). O meu primeiro instrumento foi órgão, depois piano. Com 17 comecei com sanfona e, em 2008, quando eu fui começar minhas composições, comecei no violão e na guitarra.

DISCOGRAFIA – O fato de teu pai ser do Nordeste (seu Manoel Jeneci é de Sairé, Pernambuco) e você sempre visitar a terra natal paterna reflete de alguma maneira na sua musicalidade?

Jeneci – Com certeza. Essa relação da saudade, típica do nordeste, é uma ponte direta para música que eu faço. No fundo eu acredito que o fato de eu ser musico é uma extensão de um movimento que começou bem antes de eu nascer. De uma família que migra de Pernambuco para São Paulo, que não tem nem um outro músico, mas tem um filho com vontade de ser músico, que é meu pai, e que acaba mexendo com coisas de eletrônica (seu Manoel consertava acordeons e tinha alguns clientes famosos, como o próprio Dominguinhos) e que quando eu apresentei a vocação me incentivou. De repente eu saio músico. Muito do que eu faço hoje é para dar satisfação para todas as pessoas que me guiaram até aqui. E a minha música guarda essa melodia saudosa, passional, por sentir falta de algo, e que é diretamente ligada à canção nordestina, aos lamentos sertanejos.

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DISCOGRAFIA –  Você já tocou na banda do Arnaldo Antunes e do Chico César, compôs algumas músicas para outros cantores. Como se deu a passagem do músico instrumentista para o compositor? Quando você sentiu que era o momento certo para engatar uma carreira solo?

Jeneci – Quando eu comecei a tocar com o Chico César e viajar pelo mundo, eu não fazia ideia que dez anos depois eu estaria compondo. Eu sabia que antes dos 30 eu ia fazer alguma coisa autoral, mas até lá eu fiquei ligado à função do instrumentista. Vivendo essa vontade de estar perto de quem eu achava interessante. E chegou um ponto que se confundiu um pouco isso de saber se era eu que estava ali atrás deles, ou eles que estavam me procurando, porque eu passei a me colocar de forma mais autoral. Eu lembro que eu ficava nas passagens de som pensando “Pó! Eu acho que se eu fizesse tal música ia funcionar nesse festival, esse público de dez mil pessoas ia curtir”. Aí eu comecei a criar num plano virtual esse álbum, idealizando o que seria bom de fazer, o que eu tinha vontade de fazer, me colando naquele lugar. Parecido com quando a gente está apaixonado que a gente faz plano, coloca as coisas num plano virtual e cria essa vontade. Foi mais ou menos assim na mudança do instrumentista para compositor. Primeiro eu fiz com a Vanessa da Mata o Amado. Nessa mesma época eu conheci a Laura Lavieri (cantora que acompanha Jeneci no CD e nos shows), eu era muito amigo do pai dela, gostei muito da voz dela, que eu não gostava da minha. E eu tocava no Cidadão (Instigado) e me reencontrei com essa música mais sentimental. Fui compondo pensando na voz dela, porque eu não gostava da minha. Em dois anos eu compus o repertório todo e já desenhei ele na cabeça, qual ia ser a primeira música, a última.

DISCOGRAFIA – E como você passou a gostar da sua voz?

Jeneci – Aos poucos, o que era insegurança se tornou convicção e eu passei a entender esse instrumento novo, que é a minha voz e por fim eu me senti realizado e aliviado. Hoje eu já sinto diferente. Taí uma coisa que com certeza vai mudar para o segundo álbum.

DISCOGRAFIA – O Feito Pra Acabar foi citado em diversas listas de melhor álbum de 2010. Como foi pra ver teu primeiro trabalho já alcançando esse sucesso? 

Jeneci – Ele foi alimentado por uma necessidade de viver algo. Nesse processo, eu sentia que tinha de dar conta, de dar uma satisfação a essas pessoas que me guiaram. Então, ele tem uma questão existencial.  Eu estive por muito tempo ligado o tempo inteiro a ele, não tive descanso até ele ser finalizado. E não foi um processo fácil, foi bem pesado. Quando eu terminei me senti aliviado, enfim eu podia pegar ele pronto, ir na casa dos meus pais, colocar ele para tocar e dizer “Olha, foi por isso que saí de casa aos 18 anos”, e foi o que eu fiz. Enfim, eu podia devolver para Guaianases (bairro paulista onde Jeneci cresceu, conhecido por ser reduto de nordestinos), para periferia de São Paulo, algo que eles pudessem gostar. Eu estou ali naquele álbum fazendo uma música para eles, uma música popular. E essa sinceridade foi de dentro para fora, e está começando a se manifestar de fora pra dentro também, porque todas as coisas feitas de dentro para fora com essa sinceridade, a resposta é igual. Às vezes o tempo é injusto, nesse caso não foi.

DISCOGRAFIA – Em uma entrevista, o (Fernando) Catatau contou que no começo do Cidadão Instigado ele se assustava quando as pessoas cantavam as músicas dele, tinha até certa raiva. Essa popularização da tua música, então, não te assusta?

Jeneci – Não, não. A vontade do compositor é de que a música chegue às pessoas, deixe de ser dele.

DISCOGRAFIA – Queria que você me contasse um pouco do teu processo criativo. Você bola primeiro a letra ou a melodia? A música sai toda de uma vez? A inspiração é autobiográfica?

Jeneci – É bem misturado, não tem muita regra, não. Onde eu tiver lugar para sentar é um bom lugar. No piano, avião, banheiro, janela, rua, chuva, fazenda ou numa casinha de sapê (risos). Às vezes, vem uma frase ou a letra e eu procuro a música. Às vezes é o contrário. Ou é uma soma de insights que surgem numa conversa, e a partir disso vem o trabalho braçal. Ao final é preciso editar tudo isso.

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DISCOGRAFIA – E, como compositor, você tem como parceiros também grandes nomes da MPB, pessoas como o Arnaldo, Wisnik, Tatit. De que modo compor com artistas desta envergadura contribui para a formação da sua linguagem musical? 

Jeneci – Toda vez que eu me aproximo de alguém para fazer música acontece alguma troca. Ou eu contribuo nas músicas de alguém, ou eles contribuem no meu projeto. Eu não fico pensando “Ah! Quem ta aqui é o Arnaldo, ou Wisnik, ou Tatit”. Eu penso que eu trabalho a serviço de uma terceira pessoa que é a canção, e como ela está ali confiando em mim, para ela ir seguir, para ela ser finalizada. E quando eu acho que para que a canção seja melhor, ou que falta alguma coisa, eu vou atrás da ajuda de algum parceiro. Lógico que ter a chance de passar algumas tardes com o Arnaldo, com o Wisnik, ter esse privilégio, é coisa rara, é um presente, e tem de ser aproveitado. Eu cito esse três porque eu acho que são eles com quem eu aprendo a fazer coisas que tenham um conteúdo que resista ao tempo, que seja sincero, poderoso, que as pessoas escutem deixem aquilo guardado no coração.

DISCOGRAFIA – Tem alguém com quem você ainda quer compor em parceria?

Jeneci – Acho que com Roberto Carlos. Não só por ele ser um cantor romântico, mas porque ele consegue sintetizar em poucos versos sentimentos que todos nós sentimos.

DISCOGRAFIA – Sobre o show aqui em Fortaleza, como estão as expectativas? E o repertório é do Feito Pra Acabar, mas tem alguma novidade?

Jeneci – Essa situação de um primeiro show é sempre instigante, o pessoal da UFC foi muito bacana de me convidar para o projeto. Eu fico tentando preparar alguma coisa para responder o carinho do público, das pessoas que pediram o show pela redes sociais. O repertório é do Feito Pra Acabar com mais duas músicas que não estão no CD, e uma terceira se eu sentir que as pessoas estão com vontade de me ouvir. Eu vou com espírito de fazer um show de todos. Meu que vou estar ali no palco, mas também de quem me escuta, e se tiver alguém disperso eu chamar: “Vem cá”.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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