Por Aflaudisio Dantas (aflaudisiodantas@gmail.com)

O álbum recém-lançado pelo Rush, Clockwork Angels já pode ser colocado no mesmo rol de Caress of Steel (1975), 2112 (1976) e Moving Pictures (1981). Não é mera retórica e o simples fato do trio canadense ter conseguido sintetizar quarenta e quatro anos de sua trajetória num único disco, já é suficiente para comprovar isso. Ainda bem que esse não é o trabalho de despedida da banda, mas se fosse, eles teriam fechado com chave de ouro.

Muitos que escreveram sobre ClockWork Angels, como João Carvalho, que publicou crítica no site G1, vem tratando o álbum como uma obra conceitual. Não é bem assim. Estão confundindo álbum conceitual com ópera rock. O álbum conceitual como o nome sugere, gira em torno de um conceito. Um tema que será abordado durante toda a sua execução. Uma ópera rock também versa sobre um ou mais temas. Entretanto, segue um enredo. Há uma história a ser contada com início, meio e fim. Na obra conceitual as faixas giram em torno do mesmo tema, sem que necessariamente haja uma ligação ou uma sequência lógica entre elas. Na ópera rock, via de regra, ocorre o contrário. É importante lembrar que os estilos não são auto-excludentes, talvez por isso haja tanta dificuldade em diferenciá-los.

É tão notório que Clockwork Angels é uma ópera rock que o escritor Kevin J. Anderson escreverá um romance baseando-se na história contada no álbum. Ainda não há data prevista para o lançamento do livro. Em 1984, o autor escreveu um outro romance, Resurrection, Inc, baseado em outra obra do Rush, o disco Grace Under Pressure (1984).

Clockwork Angels se mostra uma odisseia vivida por um personagem criado por Neal Peart, que mais uma vez comprova o grande letrista que é. Caravan, faixa que abre o disco situa o ouvinte no ambiente da história: “Em um mundo iluminado apenas pelo fogo, uma longa série de labaredas sob estrelas penetrantes”. Já neste início ficam evidentes as marcas de Neal Peart como compositor. Um mundo distópico onde um personagem se aventura em busca de respostas para seus conflitos. Somos convidados a desbravar esse mundo e buscar respostas junto com o protagonista: “Em uma estrada iluminada apenas pelo fogo, indo para onde eu quero, em vez de onde deveria, espio as sombras que passam”. Essa canção não é inédita, pois antes do álbum chegar ao público, Caravan já havia sido lançada na forma de single.

BU2B vem na sequência, outra canção lançada antes do álbum. É aqui que os questionamentos se aprofundam de forma contundente: “Fui educado para acreditar, O universo tem um plano, nós somos apenas humanos. Não é nosso dever entender”. Vemos uma crítica ao teor fatalista presente em várias religiões. Não questione, apenas obedeça, pois Deus proverá tudo para você. A melodia tem força. Uma guitarra pesada acompanhada de um baixo cadenciado, forma com a bateria pulsante de Peart os pilares para a poesia mostrar sua desenvoltura.

A faixa que dá nome ao álbum continua no mesmo tema da canção anterior. Traz um ingrediente a mais que são os Clockwork Anjels (anjos mecânicos). Eles são uma espécie de catalisadores de todo o conhecimento que o homem almeja. A faixa tem todos os ingredientes da fase progressiva do Rush. Com viradas repentinas e muito lirismo. The Anarchist começa com uma melodia pegajosa e um trabalho quase perfeito de Alex Lifeson na Guitarra. Aqui que nos deparamos com aquilo que pode ser um esboço do mundo que o protagonista tanto busca. Há um clamor por justiça ou vingança contra as iniquidades do mundo: “Sinto falta de seus sorrisos e seus diamantes; me falta a sua felicidade e amor, invejo-os por todas essas coisas, eu nunca tive meu quinhão”.

Halo Effect conta os primeiros revezes do personagem. Aqui ele se depara com as frustrações causadas pela jornada que ele mesmo começou: “O que eu fiz? Tolo que eu era para lucrar com os erros da juventude? É vergonhoso para dizer”. A música é certamente uma das mais leves e reflexivas do álbum. Assemelhando-se bastante com a fase posterior ao álbum Grace Under Pressure (1984), na segunda metade dos anos 1980. Seven Cities of Gold traz um pouco das diversas nuances da banda. A levada da fase mais hard rock de 1973 a 1976, passando pelo experimentalismo tecnológico da fase oitentista  e o som mais pesado e cru de Vapor Trails (2002) e Snake & Arrows (2007). É uma forte candidata a hit, daquelas que serão executadas exaustivamente mundo afora, nas turnês.

Em The Wreckers, Lifeson e Lee resolvem brincar. Trocam de posição, Lifeson assume o baixo e Geddy Lee, a guitarra. O resultado é uma música mais simples destoando um pouco do restante da obra. Headlong Flight é talvez a música mais emblemática. A história já se encaminha para o seu desfecho, onde o protagonista analisa o saldo de sua aventura e se mostra satisfeito com o que vivera até então. A fustração se faz presente, trazendo consigo uma ponta de resignação. Por que apesar de buscar respostas e de tê-las encontrado, de certa forma, não eram bem as respostas que ele queria. A música é uma ‘bordoada na orelha’. O baixo de Geddy Lee dita o ritmo com muitas variações sendo acompanhado por uma base sólida da guitarra. O desempenho de Neal Peart supera as expectativas provando que a idade não tirou o vigor de suas baquetas.

Wish Them Hell prepara o campo para o final da história. Há serenidade nos versos e alguma violência na música como se houvesse conflitos dentro do personagem que estão sendo dirimidos. The Garden é o grand finale. Geddy Lee empresta toda a sensibilidade de sua voz para mostrar que tanto quanto qualquer um de nós, o personagem buscava aceitação e autoconhecimento. Amor e respeito a si próprio e aos outros são os únicos tesouros que se pode buscar em tal empreitada, e como é difícil consegui-los num mundo tão desigual e egoísta. A canção é leve e toda a tempestade presente em várias faixas pesadíssimas ao longo da história já não tem lugar. A calmaria chegou e se fez presente da melhor maneira possível.

O Rush mostra mais uma vez que não é preciso fugir de suas raízes e convicções para sair do lugar-comum. Conseguiu ser original e construir um dos melhores trabalhos de sua carreira reafirmando justamente tudo o que seus críticos rotulam de velho e ultrapassado. É um álbum que já nasceu sendo clássico.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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