Para compensar a ausência deste blog na comemoração dos 70 anos de Milton Nascimento, realizada na última sexta-feira (26), publico ao longo desta semana os textos do caderno especial publicado no Jornal O Povo no dia 21/10/ 2012. É tudo de autoria deste que vos fala

Em seus primeiros anos, o pequeno Milton costumava responder cada “não” que recebia fazendo um bico de dar medo. Não tardou e logo ele ganhou da mãe Lilia o apelido de Bituca. O tempo passou, uma carreira se espalhou pelo Brasil e pelo mundo, e Milton Nascimento chega próximo dia 26 aos seus 70 anos sem nunca ter deixado de ser o Bituca, tanto para os de dentro de casa, quanto para os milhares de fãs que ele fez ao longo dos seus 50 anos de carreira. Esse meio século de trabalhos prestados à música brasileira teve início no dia que o jovem Bituca colocou o curso de economia de lado para formar os W’s Boys e gravar seu primeiro compacto com a música Barulho de Trem, com o Conjunto Holliday.

Nestes primeiros passos, ele já contava com o amigo Wagner Tiso ao seu lado. Cinco anos depois, ele estrearia em um LP completo, puxado pelo sucesso de Travessia, parceria com Fernando Brant que terminou em segundo lugar no II Festival Internacional da Canção (o primeiro foi para a desconhecida Margarida, de Guarabyra) e ainda rendeu a Milton o prêmio de melhor intérprete. Por isso, os 45 anos do disco Milton Nascimento formam mais uma efeméride comemorada neste 2012. Curiosamente, Milton andava meio borocochô com os festivais e já havia decidido nunca mais participar deles. Dizendo que precisava de músicas para seu próximo disco, foi o amigo Agostinho dos Santos quem inscreveu Travessia, sem que o compositor quisesse.

 

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Mesmo que toda a sua vida artística tenha sido cantando os trilhos e paisagens de Minas Gerais, Milton nasceu no Rio de Janeiro, em 26 de outubro de 1942. Filho da empregada doméstica Maria do Carmo Nascimento, ele perdeu a mãe antes de completar três anos. Foi então que Lilia Campos, filha da patroa de sua mãe com quem ele já era muito apegado, resolveu adotá-lo e levá-lo para a cidade mineira de Três Pontas. O casal Lilia e Josino Campos ainda voltariam a adotar outras duas crianças, que eram sustentadas com os salários de bancário, professor de matemática e diretor da Rádio Clube de Três Pontas que o pai acumulava.

O amor de Milton pela mãe Lilia era imenso. Foi ela, inclusive, quem o encaminhou para a música quando lhe deu uma sanfona de oito baixos aos quatro anos. Em retribuição, o filho a presenteou com um tema instrumental gravado no clássico Clube da Esquina (1972). Voltando à sanfoninha, ele ficou encantado com o presente que usava para acompanhar a mãe pelas quermesses. Ela cantava e ele tocava. Como o instrumento oferecia poucos recursos, ele compensava com a própria gargante e, assim, meio que sem querer, foi amolando uma das vozes mais afiadas que se ia ter notícia nos anos seguintes. Segundo o amigo Caetano Veloso, a voz de Milton “é o mais belo som que o ser humano é capaz de produzir”.

 

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Mas nem tudo foram flores na infância de Milton. Sofrendo com os preconceitos de uma cidade pequena, ele, que era o único negro entre os irmãos, cada vez mais procurava abrigo na música. Como não podia frequentar o clube da cidade e as crianças eram proibidas de brincar com ele na rua, sua sanfona foi se tornando sua companheira fiel. Até que ele descobriu o violão aos 10 anos e, aos 13, já estava pronto para ser crooner num conjunto de baile. Indo de Ray Charles a Carlos Galhardo, ele chegava a trabalhar oito horas por noite, sendo obrigado a controlar sua já constante timidez.

Em 1963, Milton Nascimento foi estudar em Belo Horizonte e instalou-se no edifício Levy, onde conheceu a família Borges. Com uma diferença de 13 andares, Milton foi praticamente adotado pelos novos amigos, com quem passava horas cantando e compondo. Montou pequenos grupos e, ao lado do inseparável Márcio Borges, começou uma parceria que acabaria rendendo muitos sucessos. Ali também, ele conheceu o pequeno Salomão, o Lô, dez anos mais novo, mas com igual talento para a música.

Lô Borges então seria protagonista de um dos capítulos mais importantes da vida e obra de Milton Nascimento. Depois de fazer sucesso com Travessia e lançar Courage (com o pianista americano Herbie Hancock) nos Estados Unidos, Milton resolve apostar no jovem talento de Lô para gravar um disco duplo. A gravadora achou que ele havia enlouquecido, mas o Clube da Esquina saiu e se tornou um dos marcos referenciais da música brasileira, com sua fusão de Beatles com folclore mineiro, folk e outros elementos. O trabalho que ainda contou com conterrâneos como Beto Guedes, Toninho Horta e Wagner Tiso, ganhou esse nome em homenagem ao encontro das ruas Paraisópolis e Divinópolis, onde esses e outros se encontravam para falar da vida e de música.

 

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Além de Lô, Márcio e Hancock, muitos nomes ajudaram a construir Milton Nascimento ao longo desses 70 anos. Um deles é a inesquecível Elis Regina, até hoje sua grande musa. Mesmo tendo passados 30 anos da morte da cantora, ainda hoje Milton assume compor pensando em sua voz, em como ela cantaria. À Pimentinha, some ainda os nomes de Gal Costa, Clementina de Jesus, Caetano Veloso, James Taylor, River Phoenix, Mercedes Sosa e tantos outros que se achegaram na obra do compositor lhe dando novas cores. Até o quarteto roqueiro RPM fez parte desse hall de parceiros, quando lançaram um compacto duplo em 1987 com Feito nós e Homo sapiens.

Passados 16 anos desde que foi diagnosticado com diabetes tipo B, doença que o deixou muito magro uma época e o obriga ainda hoje a ter cuidados com alimentação, Milton Nascimento segue com muitos planos para seus aniversários. Correndo o Brasil com a turnê 50 anos de Voz nas Estradas, que vai gerar seu próximo DVD, ele ainda planeja um trabalho inédito ao lado do guitarrista Ricardo Vogt e da cantora e baixista estadunidense Esperanza Spalding. Também estão em vista dois livros, um escrito por Chico Amaral (Skank) baseado em conversas que ele teve com Milton e outro do assessor Danilo Nuha, reunindo todas as letras do compositor. Há ainda a digitalização de todo o seu acervo de fotos, cartas, documentos e gravações pelo Instituto Antônio Carlos Jobim e o recente registro do espetáculo teatral Ser Minas Tão Gerais, feito pelo grupo Ponto de Partida sobre a obra de Milton. São muitos passos de alguém que entrou no bailes da vida e não pretende sair tão cedo.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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