Se, nos anos 1990, Pernambuco seria aclamada como uma das terras musicalmente mais promissoras do Brasil (principalmente por ter parido o manguebeat), vinte anos antes, ela já seria berço de uma geração de músicos que faria história. Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Lula Côrtes e Robertinho do Recife seriam alguns desses nomes que, cheios de juventude e coragem, começariam uma fusão meio louca de rock, psicodelia e sons nordestinos, tudo registrado em trabalhos antológicos, como Paêbiru e Quadrifônico. Em meio àquele cenário promissor, também surgiram personagens que não resistiriam ao tempo, mas virariam lendas.

Uma delas, talvez a maior delas, chamava-se Ave Sangria. A banda formada por Marco Polo (vocais), Ivson Wanderley (guitarra solo e violão), Paulo Raphael (guitarra base, sintetizador, violão, vocal), Almir de Oliveira (baixo), Israel Semente (bateria) e Agrício Noya (percussão) teve vida por demais efêmera e só teve tempo de lançar um disco. O autointitulado trabalho chegou às lojas em 1974, apresentando uma mistura vigorosa de sons, tudo sem muito pudor. Aliás, segundo as tais lendas, pudor, realmente, não era com eles.

A banda surgiu num Brasil censurado, pós-Tropicalismo que tinha uma juventude em busca de espaços para se expressar. Quando Marco Polo conhece Almir, que tocava em bandas e baile, surgiu uma química que começou a render composições novas. Na época, Recife andava parada, o que fez Polo se mandar para o Sudeste, onde passou dois anos. Na volta, quis montar uma banda e nasceu o Tamarineira Village, que logo começou a chamar atenção pelas apresentações explosivas, performáticas e roqueiras. Um olheiro da Continental viu os meninos e os convidou para gravar um disco. Como condições para essa estreia fonográfica, precisariam de uma estrutura mais profissional de trabalho – eles viviam em bando, tipo Novos Baianos – e teriam que mudar de nome.

Ave Sangria foi como o sexteto ressurgiu e batizou o disco de estreia. As influências de Beatles, Luiz Gonzaga e rock progressivo bailam pelas 12 faixas que vão de momentos sublimes ao deboche desmedido. Dois Navegantes começa o álbum com uma levada que simula o balanço de um barco em direção ao horizonte. “Não deixes a vela apagar, nem o mastro cair, nem a corda prender”, canta Marco Polo ancorado por um solo agudo e insistente de sintetizador. Segue para uma levada à la Raul Seixas em Lá Fora, cujo verso falando em “silêncio costurado na boca de um guarda” não deve ter agradado a censura.

Mas nada desagradou mais os militares do que Seu Waldir. O samba de versos rápidos foi o que chegou mais perto de um hit para o Ave Sangria. Tocou nas rádios e foi cantada nos shows de Ney Matogrosso na época – além de ser gravada por ele em 1981. Os versos lascivos de um jovem apaixonado por um homem mais velho não tardaram a incomodar a censura federal. “Eu trago dentro do peito/ Um coração apaixonado/ Batendo pelo senhor/ O senhor tem que dar um jeito/ Se não eu vou cometer um suicídio” não era o que governo queria para a sociedade naqueles tempos. Pra piorar, havia uma fama de que eles usavam batom e se beijavam no palco. As controvérsias sobre esses fatos permanecem, mas o estrago já foi feito.

O disco ficou poucos meses nas lojas, até ser censurado. Uma reedição veio em 1974, sem a polêmica Seu Waldir, mas aí o núcleo do Ave Sangria já havia esfacelado. É verdade que nem o som do LP, nem mesmo a capa, agradaram os músicos na época. Gravado em apenas uma semana e sem nada de experiência em estúdio, eles ficaram à mercê de um produtor que não entendia de rock. Ainda assim, eles tinham um plano que foi abortado. E o disco ficou esquecido por décadas, até que a geração download redescobriu essa joia da psicodelia pernambucana que foi replicada em blogs e plataformas de streaming.

Com o fim do Ave Sangria, cada um foi para seu lado. Parte da banda foi tocar com Alceu Valença, onde Paulo Rafael permaneceu até depois da virada do milênio. Quando a banda foi redescoberta, surgiu a demanda por um reencontro ao vivo. Marco Polo, Paulo Rafael (guitarra), Almir Oliveira (violão) e Ivinho (guitarra) voltaram a subir no mesmo palco em 2004, refazendo aquele repertório que andava empoeirado. Depois foi a vez de relançar o primeiro e único disco do Ave Sangria em CD e LP. De quebra, ainda foi lançado o registro ao vivo do show de despedida Perfumes e Baratchos, realizado em 1974 no no Teatro Santa Isabel. Agrício, Ivinho e Israel, já faleceram, alguns deles sem verem seus esforços juvenis resgatados. Devidamente recolocados onde deveriam ter permanecido, agora é fácil conhecer o som do Ave Sangria. Basta apertar o play.

Faixas de Ave Sangria (1974):

1. Dois navegantes (Almir de Oliveira)
2. Lá fora (Marco Polo)
3. Três margaridas (Marco Polo)
4. O pirata (Marco Polo)
5. Momento na praça (Almir de Oliveira/ Marco Polo)
6. Cidade grande (Marco Polo)
7. Seu Waldir (Marco Polo)
8. Hei! man (Marco Polo)
9. Por que? (Marco Polo)
10. Corpo em chamas (Marco Polo)
11. Geórgia, a carniceira (Marco Polo)
12. Sob o sol de satã (Ivson Wanderley)

>> Dois navegantes (Almir de Oliveira) por Carlus Campos

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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