Nada em Jards Macalé vai soar comum para um ouvinte de primeira viagem. Confundindo arte e vida, ele é dono de uma das obras mais cheias de personalidade dentro da música popular brasileira. O carioca nascido na Tijuca em 3 de março de 1943 não faz, samba, blues ou bossa nova, mas usa um pouco disso tudo na hora de compor. Não foi tropicalista, mas acompanhou de perto a movimentação iniciada por Gil e Caetano.

Escrevendo o certo através de melodias tortas, Jards Anet da Silva – Macalé é um apelido, tirado do pior jogador do Botafogo – até foi chamado de “maldito” por alguns burocratas de gravadora, dado o caráter pouco comercial de suas canções. No entanto, quebraram a cara aqueles que achavam que ele iria facilitar as coisas. Cada vez mais fiel às próprias convicções artísticas, o bardo seguiu cantando e compondo do jeito que sabe. É a “macalé music”.

Logo na largada, no disco Jards Macalé, de 1972, toda essa personalidade ficou impressa em 10 canções, das quais oito são de próprio punho. Dessas, pelo menos três iriam se tornar trilha sonora obrigatória de quem está disposto a ouvir o incomum. Transbordando melancolia por todos os lados, Movimento dos barcos é celebrada por novas vozes, onde se inclui o roqueiro oitentista Toni Platão. Outra é Mal secreto, blues que ganhou releitura explosiva na voz de Gal Costa, registrada no antológico Fa-tal. No mesmo disco, a baiana também faria o blues Hotel das estrelas, entrecortada pela guitarra viajante e irrefreável do mágico Lanny Gordin.

Lenda viva da guitarra brasileira, Lanny também está no disco Jards Macalé, assumindo também o baixo, enquanto Tutti Moreno segura a cozinha na bateria. Desse encontro de virtuoses, saiu um registro cru, meio roqueiro, quase punk, cheio de referências à contracultura da época, tudo com Jards cuspindo força e poesia por todos os lados. E é claro que uma álbum como esse demoraria para ter seu valor reconhecido, dado seu caráter artístico no máximo, e comercial no mínimo. Com poucas cópias vendidas na época, acabou sendo tirado de circulação. Pra piorar, a censura federal implicou com versos como “se me der na veneta eu morro, se der na veneta eu mato” (Revendo Amigos), que precisaram ser reapresentados inúmeras vezes até conseguirem a liberação.

Antes desse primeiro LP, Jards Macalé havia apresentado um compacto com quatro canções, entre elas o blues feroz e inconformado Soluços. Antes ainda, atuou como músico em espetáculos de teatro (Arena conta Bahia, por exemplo), dirigiu Maria Bethânia, teve canção gravada por Elizeth Cardoso e participou do antológico disco Transa, de Caetano Veloso. De uma forma ou de outra, tudo isso está presente em Jards Macalé, um dos trabalhos mais inusitados e surpreendentes da MPB. Ainda mais por ser um disco de estreia, esse é um soco no estômago da caretice e, por isso mesmo, é obrigatório.

Faixas de Jards Macalé (1972):

1 Farinha do desprezo (Capinan/ Jards Macalé)
2 Revendo amigos (Jards Macalé/ Waly Salomão)
3 Mal secreto (Jards Macalé/ Waly Salomão)
4 78 Rotações (Capinan/ Jards Macalé)
5 Movimento dos barcos (Capinan/ Jards Macalé)
6 Meu amor me agarra & geme & treme & chora & mata (Capinan/ Jards Macalé)
7 Let’s play that (Jards Macalé/ Torquato Neto)
8 Farrapo humano (Luiz Melodia)
9 A morte (Gilberto Gil)
10 Hotel das estrelas (Duda/ Jards Macalé)

>> Mal secreto (Jards Macalé/ Waly Salomão) por Carlus Campos

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About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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