Cleonice Berardineli e Maria Bethânia HORZ 4 - (O Vento Lá Fora)Desassossegado, misterioso, atormentado, único. Muitas palavras seriam necessárias para descrever Fernando Pessoa. Ou “Fernandos”, uma vez que só no plural se consegue compreender todas as personalidades que o poeta português assumiu ao longo da curta vida. Aclamado como o maior entre os poetas da língua portuguesa, penetrar nas suas palavras é algo que exige atenção, cuidado e experiência. E foi o que fizeram a cantora Maria Bethânia e a professora Cleonice Berardinelli no DVD O vento lá fora.

O projeto nasceu de uma mesa disputadíssima que aconteceu em 2013, na Festa Literária de Paraty (Flip). No filme, recém-lançado pela Biscoito Fino, elas confirmam o amor pelo poeta recitando 38 poemas ao longo de 62 minutos. Dirigido por Marcio Debellian, O vento lá fora traz cenas pitorescas gravadas para um público seleto reunido no estúdio da gravadora. Em uma delas, Cleonice chama a atenção de Bethânia na pronúncia da palavra “saudade” dentro de um verso de “Prece”. Depois de corrigida, a cantora repete o trecho e pergunta se ficou bom. “Quase”, é a resposta seca.

O Vento Lá Fora - CAPAMas quem é esta que repreende assim uma protegida de Oxum? Carioca de 98 anos, Cleonice Berardinelli ocupa da cadeira número oito da Academia Brasileira de Letras e é considerada a maior autoridade brasileira em Fernando Pessoa. Dona Cleo, como gosta de ser chamada, foi a primeira brasileira a defender um trabalho acadêmico sobre o poeta português e a segunda no mundo. Seu primeiro contato com o escritor das famosas cartas de amor ridículas aconteceu quando um amigo perguntou o que ela achava dos poemas de Pessoa. “Não acho nada, porque nunca o li”, foi a resposta. “Uma falha na sua formação intelectual. Leve o livrinho, leia-o e venha conversar comigo”, devolveu o amigo responsável por inocular o “mágico veneno” em suas veias.

Maria Bethânia conheceu Pessoa através de Fauzi Arap (1938 – 2013). O paulistano dirigiu a baiana em Rosa nos ventos, no início da década de 1970. O show inaugurava uma marca dos espetáculos da artista: o repertório musical intercalado pela declamação de textos poéticos. Lançada em disco em 1971, o show já trazia três textos do poeta português que acabou se tornando o seu preferido. Mesmo que outros autores tenham surgido, como Clarice Lispector, Mário de Andrade e Ferreira Gullar, Pessoa sempre foi mais preferido. Isso fica claro em Imitação da vida, disco de 1997, todo pontuado por poemas como “Tabacaria” e “Passagem das horas”.

E foi através de Imitação da vida de Cleonice Berardinelli conheceu Maria Bethânia. Apresentadas por um amigo em comum, elas se encontraram no camarim do Canecão, num dia que também contou com José Saramago na plateia. Em 2010, foi a vez de elas receberem a Medalha do desassossego, comenda concedida pelo centro cultural lisboeta Casa Fernando Pessoa a quem divulga a obra do autor de “Guardador de rebanhos”. A homenagem é justa para duas mulheres que tornaram a alma de Pessoa cada vez maior e mais viva. “Para ler Fernando Pessoa é necessário que o leitor tenha sensibilidade para poesia e inteligência para penetrar nos múltiplos caminhos que se oferecem”, ensina Dona Cleo, em material enviado à imprensa. E Bethânia completa: “O mundo sempre fez muito barulho e está fazendo cada vez mais. E o silêncio é importante, faz falta. Onde cabe Pessoa num momento tão sonoramente poluído?  Fernando Pessoa cabe porque a força dele é essa, silenciosa, é essa a força de um poeta, é contra a maré. O poeta é o que vê o que ninguém vê, o que fala o que as pessoas acham que não existe”.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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