Foto: Humberto Mota

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Ron Carter nasceu na pequena Ferndale, no estado americano de Michigan, em 4 de maio de 1937. Com 10 anos, durante uma atividade da escola, foi fisgado pela música e logo quis se dedicar a um instrumento. A primeira escolha foi o violoncelo, mas logo teve que abandona-lo por conta dos estereótipos raciais que caiam (e caem) sobre membros de orquestras.

Ainda assim, Ron não abandonou a música e partiu para estudar o contrabaixo. Embora não tenha abandonado de fato o violoncelo, foi nesse novo instrumento que ele tornou-se uma grande estrela internacional. Requisitado como muito poucos, ele já acompanhou gente como Tom Jobim, Chet Baker, Hubert Laws, Quincy Jones e Gato Barbieri. E, claro, impossível esquecer sua participação no segundo quinteto de Miles Davis, a quem resume chamando de “um amigo que tocava trompete muito bem”.

Avesso a endeusamentos, Ron Carter diz que tudo o que fez e faz é pela música. Tanto que, aos 76 anos, ele mantém uma agenda regular de shows e gravações. E foi numa breve passagem por Fortaleza, quando se apresentou com o trombonista Raul de Souza, que ele recebeu O POVO. Escolhendo as palavras com cuidado, ele falou sobre sua história na música, sempre se colocando num papel mais discreto do que de fato merece. Mas não falsa modéstia. É só vontade de continuar fazendo música e cada vez melhor.

O POVO – Como começa seu interesse pela música?
Ron Carter – Eu tinha 10 anos de idade, no Elementary (primeiro nível da educação americana), o professor levou alguns instrumentos para a sala de aula e pediu pros alunos escolherem um deles. Logo eu escolhi o violoncelo.

O POVO – E como passou para o contrabaixo?
Ron Carter – Eu era muito bom no violoncelo. Mas, quanto mais eu tocava, mais eu tomava empregos de pessoas brancas. E quando o baixista da orquestra em que eu tocava se formou, eles precisaram de outro. Foi então que eu percebi que, se eu começasse a tocar (baixo), eles iriam me chamar.

O POVO – Então posso dizer que foi o baixo quem lhe escolheu, não o contrário.
Ron Carter – A sociedade escolheu por mim.

_DSC4340O POVO – Esse tipo de postura preconceituosa, de exclusão, ainda acontece nas orquestras?
Ron Carter – Sim, existe. Olhe para imagens das orquestras dos anos 1960, 70, 80 e 90. Você vê quem ocupa cada posição. E minha preocupação é que, mesmo que as crianças estejam indo para os conservatórios, se preparando para trabalhar nas grandes orquestras, eles ainda não têm interesse nos negros. Eles não fazem essa inclusão, mesmo que as crianças negras estudem. Pode olhar nas orquestras de Filadélfia, Cleveland, Boston, Nova York. Mesmo depois de todas essas décadas, você só vai ter um ou dois negros. E crianças, adolescentes e adultos se formam todo ano em música, mas eles só escolhem uma pequena parte. Então, como eles vão tocar? Onde vão trabalhar? Eles praticam pra entrar nas orquestras e, depois, não são contratados.

O POVO – Que músicos foram importantes na sua formação? Que músicos inspiraram?
Ron Carter – Todos os músicos são importantes na minha formação e como inspiração eu digo as crianças. Mas, para ser mais específico, eu cito J. J. Johnson (1924 – 2001), no trombone, e Cecil Payne (1922 – 2007), no sax barítono.

O POVO – Você diz no seu site que o baixista é como o quarterback (posição do futebol americano) na banda, que ele precisa defender esse som. Queria que você falasse sobre esse papel do baixista.
Ron Carter – O baixista é o único no grupo que toca cada nota em cada compasso. Ele tem que manter a forma da música na zona dela. Ele determina o ritmo da música. Ele mantém a entonação, mostra pra onde vai o suingue. O volume e a dinâmica da banda. Para toda nota, pra cada compasso, pra cada música, todas as noites. Incluindo os domingos! (risos)

O POVO – Você já acompanhou muitos artistas, mas o mais citado é sempre o Miles Davis. Como foi tocar com ele, que foi um dos maiores músicos da história?
Ron Carter – (Depois de 15 segundos em silêncio) A coisa que me deixou triste é que, quando o Miles ficou doente, nós não trabalhávamos continuamente. Eu o via indo para o trabalho se sentindo muito mal. Ele era tão preocupado em fazer seu som, que ele ia mesmo doente (Miles morreu em setembro de 1991, pneumonia e insuficiência respiratória).

[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=zjYM76FPS3w[/youtube]

O POVO – E qual foi a importância dessa experiência na sua história?
Ron Carter – (Mais alguns segundos pensando) O público tem muitas visões do Miles Davis. Eu nunca vi esse tipo de comportamento que as pessoas vêm nele. Eu não reconheço isso. Ele era meu amigo. Primeiro ele era meu amigo, depois músico. Logo, eu nunca falo o que as pessoas esperam ouvir. Por que as pessoas não o conhecem e ficam nos rumores. Pra mim, era uma pessoa normal. Um amigo que tocava trompete. E muito bem.

O POVO – Mas é verdade que ele era mal humorado?
Ron Carter – Não conheço ninguém que não tenha seus momentos de mau humor. Hoje, quando cheguei no aeroporto, vindo de Nova York para São Paulo, na hora de entregar o passaporte, tinha 95 pessoas na minha frente na fila. E eu só tinha 10 minutos pra pegar minha mala, fazer o check-in e ir pro portão de embarque. Nesse momento, eu fiquei muito mal humorado.

O POVO – Você já esteve em mais de 2000 gravações e dividiu o palco com muita gente. Como se sente tocando hoje, aos 76 anos?
Ron Carter – Eu nunca penso nisso. Quando eu ouço perguntas sobre idade, eu nunca gosto. Como eu sou o quarterback, minha intenção de tocar no palco é fazer com que o grupo todo toque melhor. É fazer um bom som.

O POVO – E quanto ao público?
Ron Carter – É que todos sintam a emoção. É muito estranho quando as pessoas vão para a ópera, a italiana, por exemplo. Quantas pessoas entendem o que está sendo dito? A maior parte não faz a menor ideia. É como uma promoção de pizza. Mas as pessoas têm que entender tudo sobre mim, o que estou tocando e sobre o blues. Não é justo! Eles (os músicos) têm que pegar a emoção.

O POVO – Você é muito conhecido pelo trabalho com o baixo acústico, mas também já tocou baixo elétrico. O que acha do elétrico?
Ron Carter – Eu admiro as pessoas que tocam, como Victor Wooten, Victor Bailey, Steve Bailey, Jaco Pastorious. São todos fabulosos. Mas eu toco o acústico.

O POVO – Mais você ainda usa ou treina com o elétrico?
Ron Carter – Eu dei meu baixo elétrico para o meu filho há 20 anos. Hoje, meu filho é bem melhor do que eu. E um pouquinho mais alto. Hoje, perguntam ao meu filho por que ele não toca baixo acústico. Ele responde: “por que meu pai já usou todas as notas”.

[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=asJRAGUlZ1c[/youtube]

O POVO – Você também já gravou com muitos músicos brasileiros, como Tom Jobim (1927 – 1994) e até tem um disco com a Rosa Passos.
Ron Carter – Eu amo esse disco (Entre amigos, 2003).

O POVO – O que você achou de gravar com músicos brasileiros?
Ron Carter – É fantástico. Os músicos brasileiros quando tocam comigo têm interesse em conhecer minha musicalidade. E querem saber da raiz dessa música. Os músicos brasileiros gostam de tocar comigo como eu gostaria de tocar com o (baterista carioca célebre na primeira fase da Bossa Nova) Edson Machado (1934 – 1990).

O POVO – A história do jazz passa por vários momentos de alta e baixa de popularidade. Como anda esse mercado na atualidade?
Ron Carter – Para mim, é um bom negócio (risos). Todas as formas de arte, como a dança, o teatro, têm os altos e baixos. Agora, o jazz está no meio. Mas eu acredito que a música ainda está se desenvolvendo e vai chegar em algum lugar. Estou muito interessando em saber para onde o jazz está indo. Estou muito curioso.

_DSC4373O POVO – Mas você vê público jovem para o jazz?
Ron Carter – Sim, absolutamente. Jovens por volta de 18 anos estão interessados e estão indo às lojas, querendo os LPs. Eles estão sentindo interesse.

O POVO – Uma das grandes virtudes que o jazz tem é de dialogar com outras culturas e outros ritmos. O que a música brasileira trouxe para o jazz?
Ron Carter – (Um tempo pensando) Um tipo diferente de harmonia e melodias maravilhosas.

O POVO – Você destaca alguém ou alguma música?
Ron Carter – Qualquer coisa do Jobim, qualquer som do Jobim. Principalmente os que não são muito conhecidos. Ele tem várias e eu acho maravilhoso. O (violonista carioca, autor de “Manhã de Carnaval”) Luiz Bonfá (1922 – 2001) também tem grandes músicas.

Pergunta do Leitor:
Fábio Amaral – O baixo acústico é um instrumento difícil de microfonar. Como você faz para garantir o melhor som?
Ron Carter – Quando eu toco numa boate, não uso microfone por que ele pega o som de tudo. Do bar, do ambiente, da porta. Não fica legal. Eu não gosto. Pra encontrar o melhor captador tem que ser o que pegue só o baixo. Eu uso quatro captadores que fazem isso muito bem, que são (da marca) David Gage. Deve ter outras quatro ou cinco marcas que eu recomendo. Mas, eu recomendo ao baixista que encontre o melhor para ele.

Fábio Amaral – Hoje, quem estuda baixo, estuda o método Ron Carter. O que você fez ou o que lhe garantiu essa originalidade?
Ron Carter – (Ele faz um rosto de espanto, para alguns segundos, e responde) Três coisas. Eu toco querendo ter a certeza que as pessoas que estão comigo vão fazer o melhor. Tenho que ter certeza que o som vai fluir melhor. A segunda, é que, toda noite quero soar melhor que na noite anterior. E, por fim, é que é sempre pela música. Não importa o que estou tocando, é sempre pela música.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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