750848696-emilio_santiago2Quando Emílio Santiago morreu, em 20 de março de 2013, entrava em extinção uma espécie cada vez mais rara na música brasileira: a dos intérpretes. Com um mercado de gravações cada vez mais sufocado, é comum que os próprios autores deem voz às suas composições, como uma forma de arrecadar nos direitos autorais e nos shows. Mesmo que não tenham a voz ideal para encarar um microfone, os “cantautores” estão em todas as esquinas.

Conhecido como “o país das cantoras”, o que também não falta no Brasil são vozes femininas em busca de compositores que queiram lhe ceder suas músicas. Mas, quanto aos homens, o ofício de intérprete era quase uma exclusividade de Emílio Santiago. E isso ele fazia com excelência ímpar. Dono de um grave profundo e aveludado, ele era capaz de levar um samba-canção para o ponto mais pungente da sua tristeza, assim como fazia balançar quando pegava uma bossa ou um samba-enredo.

boxIsso é o que mostra a coleção Três Tons de Emílio Santiago, lançada pela Universal. Reunindo três discos lançados entre 1977 e 1980, o box resgata uma época do cantor carioca que antecede o sucesso popular da série Aquarela brasileira, que renderia oito esticados volumes. Antes de estourar nacionalmente com Saigon, Verdade chinesa e uma carrada de pot-pourris (meio cafonas, é fato), o carioca tinha prestígio no meio musical, mas não vendia disco. Uma injustiça a um repertório certeiro, que foi suplantado pelo sucesso pasteurizado.

No disco Comigo é assim (1977), que abre a caixa, o volume de suingue é suficiente pare encher um estádio. Com arranjos de João Donato, Antônio Adolfo e J. T. Meireles, Emílio Santiago solta a voz em sambas e bossas cheias de ginga, como a buliçosa Nega, que fez sucesso na época. No balanço do trem, de Gonzaguinha, é uma sucessão de groovies, assim como Dança, de Kleiton Ramil, e ambos se conectam aos sons negros que vinham dos Estados Unidos. Já Quando chegares, de Carlos Lyra, traz toda a intimidade de uma conversa a dois.

De 1979, O canto crescente de Emílio Santiago traz Logo agora, uma pérola do Cacique de Ramos, que caiu como uma luva no registro sedoso do cantor. Desfilando a maciez da sua garganta, Emílio trata a traição da letra com uma elegância digna do mestre Lupicínio Rodrigues. Ao lado dela, há ainda Trocando em miúdos (Chico Buarque/ Francis Hime), Outra vez (Isolda) e Dores de amores (Luiz Melodia). Pra encerrar, um dueto melancólico com João Nogueira em Amigo é pra essas coisas (Silvio da Silva/ Aldir Blanc), lançada nove anos antes pelo MPB-4.

Pra fechar estes Três Tons, o disco Guerreiro coração (1980) é, em partes, o primeiro disco ao vivo de Emílio. Gravado em estúdio diante de uma plateia contida, a ideia era reproduzir o espetáculo que ele vinha fazendo no Teatro na Galeria, no Rio de Janeiro. O repertório é feito basicamente de canções inéditas na sua voz. Assim, ele passeia pelos repertórios de Elis Regina (O cantador), Clara Nunes (Alvorecer) e Elizeth Cardoso (Minhas madrugadas). Sucesso de Cauby Peixoto naquele ano, Mistura é um ponto alto.

Foi então que, em 1988, atendendo um convite de Roberto Menescal, começaria a série Aquarela brasileira. Foram 14 anos de muita popularidade e dinheiro, até que cansou. O projeto feito para o mercado internacional marcou a história do cantor de forma irremediável, a ponto de ele tocar em todas as rádios, mas ganhar também uma imagem popularesca que não reflete o intérprete refinado que sempre foi. O que veio em seguida tentou tirar essa imagem e, aos poucos, foram redescobrindo que poucos cantores foram tão perfeitos quanto Emílio Santiago. E, se não surgirem outros da sua linhagem, ele terá sido também o último.

P.S.: Um leitor entrou em contato para comentar a ausência de Ney Matogrosso no texto acima. De fato, trata-se de um intérprete primoroso, mas não faz parte da escola de Emílio Santiago. Ney é um performer, um ator que leva a música a outras dimensões. Já Emílio é o autêntico crooner, que “só” tem a voz como instrumento de trabalho. Mas, sim, são dois gigantes de vozes inacreditáveis.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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