AF_ENCARTE_IMPRESSO_CD_Bowie_04.inddA renovação é algo que faz parte do cardápio cotidiano de boa parte dos seres. Procurar novas formas de fazer o que se faz, melhorar, crescer, conhecer coisas novas. No mundo da música, esse elemento é responsável por recriar carreiras, provocar mudanças artísticas, novas parcerias, descobertas de instrumentos e ritmos. No mundo particular de Paulinho da Viola a renovação existe, mas se constrói de dentro para fora.

Ouvindo em sequência os 11 discos da caixa Ruas que sonhei, lançada pela Universal Music, se percebe que o sambista criou um modo de trabalho que é imune a modismos e envelhecimento. Como um senhor do próprio tempo, ele costura presente e passado seguindo o próprio ritmo e confirmando que a pressa pode ser inimiga da perfeição.

Ruas que sonhei reúne os 10 discos lançado por Paulinho da Viola ao longo da década de 1970 – além de uma coletânea inédita de raridades. Se estivéssemos falando de um artista comum, seria óbvio que “10 discos em 10 anos” é sinônimo de “um disco por ano”. Mas o relógio do portelense não é assim tão matemático. Teve ano sem disco e ano com dois discos. Tudo de acordo com a vontade e o tempo dele.

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O disco que abre o box e a década de 1970 para Paulinho da Viola apresenta o público joias preciosas como Foi um rio que passou em minha vida, Tudo se transformou e Jurar com lágrimas. O álbum lançado originalmente pela Odeon também esclarece o que Paulo César Batista de Faria veio fazer no mundo: defender o samba com elegância, calor e refino. Como se a areia pudesse subir e descer na ampulheta, ele mistura composições próprias com interpretações de mestres como Bucy Moreira, Cartola, Pixinguinha, Zé Keti e João de Barro.

No meio desse vai e vem temporal, ele ainda apresentou Memórias Chorando e Memórias cantando, lançados ao mesmo tempo em 1976. O primeiro é uma peça instrumental que leva o ouvinte às antigas rodas de choro, improviso, cerveja e conversa boa. E o segundo é o mais do mesmo do carioca nascido em Botafogo: lirismo poético, melodias ricas, arranjos eruditos e mensagens populares.

Conservando o visual original dos LPs, os disquinhos da caixa conservam os trabalhos gráficos feitos pelo essencial Elifas Andreato. A delicadeza que o artista usa para tratar a natureza, o amor e o tempo se alinham perfeitamente à mensagem de Paulinho da Viola. Para confirmar, basta ver a emoção estampada na capa de Nervos de aço (1973), disco que abre com Sentimentos.

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Depois da história contada em Ruas que sonhei, Paulinho da Viola teve uma produção farta na década de 1980 e foi parando. Cada vez mais dono do seu tempo, ele foi dividindo as obrigações profissionais com a família, a música e a carpintaria, hobby anunciado na capa do disco de 1978 – aquele que trouxe Coração leviano. Com tantos afazeres, já faz 19 anos que ele não lança disco inédito e oito que não lança disco algum (o último, de 2007, foi o Acústico MTV).

E, para quem espera algo novo, ele já vem dizendo que não tem pressa de lançar trabalho algum. Também não adianta esperar novas parcerias, flertes com outros estilos ou uma novidade que renda notícia além da música em si. Assim como é o rock do ACDC, o samba de Paulinho da Viola cresce quando se conserva, quando insiste em perpetuar fiel à tradição. É bem verdade que os discos de Ruas que sonhei se parecem. Por isso, se um deles é ótimo, os outros também serão. E são.

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Paulinho da Viola em 5 tempos:
– Rosa de Ouro
Antes de gravar um disco próprio, Paulinho da Viola dividiu seis trabalhos coletivos. Com Clementina de Jesus, Araci Cortes e um time de sambistas, ele gravou o musical Rosa de Ouro em dois volumes. Em seguida, viriam outros dois com o grupo A Voz do Morro. E, com o amigo Elton Medeiros, ele fez o antológico Samba na madrugada.

– Mangueirense?
Em 1968, Hermínio Bello de Carvalho inscreveu a Sei lá, Mangueira, composição sua com Paulinho, no festival de música da Record. A atitude preocupou o sambista, que temeu o descontentamento dos colegas portelenses. Para se retratar, Paulinho escreveu Foi um rio que passou em minha vida como um pedido de desculpas.

– Meu tempo é hoje
Em 2003, a vida de Paulinho da Viola foi tema do documentário Meu tempo é hoje, de Izabel Jaguaribe. Misturando depoimentos e encontros musicais, o filme conta com participações especiais de Marisa Monte, Teresa Cristina, Zeca Pagodinho, Amélia Rabello e outros. O resultado é um retrato íntimo do compositor e sua obra.

– Tributos
Em 2000, os paulistanos Zé Luiz Mazziotti e Célia dividiram Pra fugir da saudade, um refinado tributo ao sambista. Dois anos depois, foi Teresa Cristina que estreou na música revelando suas semelhanças com a voz e o jeito manso do homenageado no projeto duplo A música de Paulinho da Viola.

– Acústico MTV
Quando o projeto já demonstrava cansaço, Paulinho da Viola gravou sua participação no Acústico MTV. Foi o primeiro representante da velha guarda do samba a registrar sua participação no programa. Curiosamente, este projeto lhe rendeu o primeiro DVD e o último lançamento inédito da carreira.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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