Virgínia Rodrigues 1 Crédito Sora Maia (2800x1867)“Eu canto desde criança. Sempre quis ser cantora. Minha mãe até tentou me colocar no balé, mas ela percebeu que era pra branco e rico”. A lembrança vem de Virgínia Rodrigues, em conversa por telefone, sem transparecer decepção. Pelo contrário, as questões que envolvem povos marginalizados pela cor ou pela classe social (o que se confunde quase sempre) é de onde ela tira força para fazer arte. Isso fica explícito nas 13 faixas de Mama Kalunga, disco lançado no fim de abril pela Casa de Fulô com apoio do Rumos Itaú 2014.

Apresentado sete anos depois de Recomeço, trabalho de voz e piano dividido com Cristovão Bastos, o quinto rebento de uma carreira de 18 anos mergulha ainda mais fundo nas raízes banto de Virgínia. Compilando tesouros perdidos de compositores negros, o álbum produzido por Tiganá Santana e Sebastian Notini adorna os agudos eruditos da baiana com um toque instrumental que combina batuques, palmas, violões e cordas. Nessa viagem até a África, ela ainda recebe convidadas lendárias como a atriz carioca Ruth de Souza e compositora peruana Susana Baca.

Capa MAMA KALUNGAO arco sonoro de Mama Kalunga começa com Ao senhor do fogo azul, de Gilson Gentil, tema erudito feito à capela, e encerra com o samba de roda Dembwa, de Tiganá. Entre uma e outra, tem o esquecido Abigail Moura, criador da essencial Orquestra Afro-Brasileira, e o samba filosófico de Paulinho da Viola. “Independente de quem seja o compositor, sempre pego o que for menos executado. Fica muita coisa bonita e as pessoas só pegam o que faz sucesso. Eu queria gravar Paulinho, mas não nada que tenha feito sucesso. Vi várias coisas que ainda quero gravar, mas escolhi essa”, aponta em tom certeiro sobre a faixa Nos horizontes do mundo.

Para reforçar as inspirações de Mama Kalunga, Virgínia Rodrigues ainda se debruçou sobre os idiomas kikongo e kibundo para gravar três faixas de Tiganá Santana. “Eu deveria ter vergonha, mas não conhecia esses idiomas. Vou morrer devendo ao Tiganá. A véa vai morrer devendo ao novo, por que ele me colocou em contato com essas línguas”, brinca a cantora de 50 anos, destacando que aprendeu só o suficiente para interpretar as canções do conterrâneo. E é com Tiganá que Virgínia divide os vocais da dilacerante Sou eu, parceria de Moacir Santos e Nei Lopes, que se destaque no repertório com sua paixão avassaladora e poética.

Filha de família pobre, a menina que ouvia Bidu Sayão no rádio e sonhava ser cantora conheceu o teatro quando foi convidada pelo diretor Márcio Meireles para participar do Bando de Teatro Olodum. Enquanto encenava Bye bye Pelô, foi assistida por um emocionado Caetano Veloso, que a convidou para gravar um disco pela Natasha Records, de Paula Lavigne. Sol negro (1997) foi um sucesso de crítica quando assustou os ouvintes com a voz angelical da baiana que, na infância, cantava as Bachianas no banheiro de casa. Em 2000 veio Nós, uma coletânea de cânticos de blocos afrobaianos, como Araketu e Ilê Ayê vestidos em arranjos camerísticos. Quando veio Mares profundos (2003), uma homenagem aos afrosambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes, a ex-doméstica e ex-manicure já era uma estrela internacional admirada por gente como Bill Clinton, David Byrne e Cris Blackwell.

[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=PRDOqIRftuM[/youtube]

Por outro lado, como é comum a quem não faz concessões, o Brasil nunca deu o devido valor para Virgínia Rodrigues. Lamentando nunca ter feito uma turnê nacional, esse é um assunto que a incomoda profundamente. “Não encaro naturalmente, acho um absurdo. Acho uma perversidade com os jovens, que não têm o direto de escolher o que querem ouvir”, critica a artista que mantém uma agenda regular de apresentações no exterior e espera convite para seu país natal. E ela já adianta que o novo espetáculo vai ser com todo o repertório de Mama Kalunga, acrescido de Melodia sentimental (Villa-Lobos/ Dora Vasconcellos) e Yá yá massemba (Roberto Mendes). Nada de relembrar os discos anteriores. “É vontade de mudar mesmo. Tenho que arriscar esse repertório por que alguém tem que apresentar Tiganá, Ederaldo Gentil, Nizaldo Costa (para o público). O máximo que pode acontecer é a plateia não gostar. Mas, aí, eu não posso fazer nada”.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles