maxresdefaultA fama da música no exterior já é algo inconteste. Em grande parte, o propulsor desse reconhecimento é a Bossa Nova, que se espalhou pelas altas rodas internacionais desde o fim dos anos 1950. Dito isso, não é de se espantar que Estrella Morente tenha se inspirado nas cordas do violão de João Gilberto e nas teclas do piano de Jobim para criar seu novo trabalho. Dividido somente com o guitarrista Niño Josele, Amar en paz une a voz rouca e miúda da cantora espanhola com um repertório precioso e bem íntimo dos nossos ouvidos. Indo além da bossa, o trabalho dirigido pelo cineasta Fernando Trueba (Belle époque) inclui Dança da solidão, de Paulinho da Viola, e Lábios que beijei, marco na voz privilegiada de Orlando Silva, tudo vertido para o espanhol (a primeira, por exemplo, vira Baile del desamor).

Amar en paz, lançado no primeiro semestre pela Sony Music, é um disco para poucos ouvidos. Mesmo se tratando de canções tão conhecidas dos brasileiros, a embalagem refinada, sutil e intimista torna um álbum um exercício de concentração. É para ser degustado com atenção. Entre delicadezas e momentos de excessiva lentidão (o que não é de todo ruim), Estrella Morente se mostra uma intérprete segura e emocionada. Econômico no dedilhado, Niño Josele abre todos os espaços para que ela brilhe, mas não se limita a um mero acompanhante. Observação importante: em muitos momentos, Amar en paz me lembrou o espetacular disco gravado por Sammy Davis Jr. com o violonista brasileiro Laurindo de Almeida. Sugiro a audição. tem no youtube

A seguir, vão algumas perguntas que troquei com Estrella por email.

image001DISCOGRAFIA – Como e quando surgiu o projeto de fazer um tributo à música brasileira?
Estrella – Este é um projeto do mestre Fernando Trueba. Há muitos anos, ele o leva na sua alma, na sua cabeça, então fez esta seleção expressamente para mim e a levou ao meu pai, Enrique Morente, que disse que nem mesmo ele teria escolhido melhor, já que ele era o produtor de todos os meus discos e sabia que este era um projeto que me deixaria muito empolgada. O Fernando foi nos passando o repertório, e tanto Josele quanto eu fomos nos apaixonando por estas criações e autores maravilhosos. E, pouco a pouco, fomos nos apropriando do repertório, com a nossa alma, com a nossa maneira de sentir a música. É uma carta de amor, como o mestre Fernando Trueba diz, um sonho que se tornou realidade neste disco, uma carta de amor à música brasileira.

DISCOGRAFIA – O que você conhece do Brasil? Já esteve aqui?
Estrella – No Brasil, há vozes maravilhosas e artistas maravilhosos. Aliás, eu não conheço nenhum artista ruim no Brasil. Eu adoro a sua música linda, sua ternura, em algumas ocasiões, sua força; em outras, sua intensidade, sua alma. É uma música com alma própria, muito rica, com melodias, ritmos e cores. Eu adoro a música brasileira, e tivemos a sorte de estar aqui, no Brasil, onde fomos recebidos com os braços abertos. Além disso, eu adoro o flamenco. A música é uma linguagem universal. Através delas, podemos compreendê-la, é uma maneira de construir pontes na vida.

DISCOGRAFIA – Queria saber da sua relação musical com o Niño Josele. Quando começaram a trabalhar juntos?
Estrella – Começamos a trabalhar juntos há muitos anos, porque ele toca violão clássico flamenco e cigano, e já fizemos projetos juntos de flamenco em várias ocasiões. Depois tivemos a sorte de fazer a nossa primeira incursão na música brasileira, há 10 ou 11 anos, também por influência do mestre Fernando Trueba, em que juntos interpretamos a canção Minha.

DISCOGRAFIA – Como foram as gravações? Pelo que vi, foi a primeira vez que você gravou um disco acompanhada apenas por um instrumento. O que achou da experiência?
Estrella – Foi muito natural, muito importante, porque aprendemos muito e nos enchemos de uma musicalidade e de uma grandeza artística muito importante para qualquer músico. Mas, para nós, que viemos do flamenco, representou toda uma descoberta. Então nos envolvemos de uma maneira natural e desfrutamos do que tínhamos nas mãos sem nos questionarmos de onde vínhamos nem para onde íamos. Apenas sentíamos.

DISCOGRAFIA – Queria saber mais sobre sua relação com a música brasileira. Qual foi o primeiro compositor ou intérprete que te chamou atenção?
Estrella – Através da minha amiga Dulce Pontes, um dia, em casa, eu descobri a Elis Regina. Eu já a havia escutado, mas não tão a fundo. Quando a Dulce colocou algumas músicas da Elis, eu fiquei surpresa de uma maneira muito especial. A partir daí, o Fernando Trueba começou a me passar versões e a me dar informações sobre o trabalho de Dolores Durán, Jobim, Villa-Lobos. Ou seja, fui envolvida por uma teia de aranha de emoções e eu acho que o segredo do nosso trabalho está no nosso entusiasmo.

DISCOGRAFIA – Que semelhanças você aponta entre a música flamenca e a brasileira?
Estrella – Tem muitas coisas parecidas, mas não são iguais. Claro que cada uma tem a sua marca, mas ambas são músicas da terra, músicas da alma, músicas que vão direto ao coração. E eu me sinto profundamente identificada com ambas, que são muito importantes para a minha vida.

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DISCOGRAFIA – Como foi feita a seleção de repertório do disco? Teve alguma ajuda de algum brasileiro? O Niño colaborou nessa seleção?
Estrella – O Fernando Trueba, sem ser brasileiro, embora a mulher dele seja, Cristina Huete, minha comadre, que é uma pessoa maravilhosa, conhece com perfeição, como a palma da sua mão, a música brasileira e todo este repertório. E sempre foi ele quem dirigiu, em todos os momentos, os passos que eu deveria dar. Ele foi nos transmitindo simplesmente sua devoção, sua veneração por todas essas canções e por todos esses autores, e nós fomos nos deixando levar, respeitando esse repertório, essa ordem na escolha do repertório, inclusive para os shows. Respeitamos a ordem do mestre, que foi muito fiel na forma como foi nos apresentando as canções, então fizemos o show tal como escutamos as canções, para aprendê-las. Foi muito natural e teve toda essa simplicidade e essa naturalidade da qual a música brasileira pode se vangloriar mais do que nenhuma outra.

DISCOGRAFIA – O repertório de Amar en paz é formado todo por músicas que têm mais de 40 anos. Você conhece a nova produção musical brasileira?
Estrella – Eu conhecia o atual, porque adoro a música brasileira. Todos os músicos devem ser apaixonados pela música brasileira, venham do gênero que vierem: da música clássica, do jazz, do flamenco, do rock, do blues ou da salsa. Todos eles devem ser apaixonados pela música brasileira, senão as suas carreiras como músicos não fazem sentido. Mas foram muito importantes neste trabalho os grandes que eu conheci, os clássicos, que são os que contam a história e que são os autênticos pilares do que estamos escutando hoje e do que queremos escutar algum dia. Ou seja, para conhecer a atualidade, foi muito importante conhecer os clássicos. Agora eu os entendo muito melhor, agora eu os compreendo muito melhor. Embora eu já os conhecesse, agora os conheço muito melhor. Principalmente para mim, foi muito importante conhecer um século inteiro de música, dos anos 1910 até a atualidade, como muito bem você perguntou.

DISCOGRAFIA – É sabido que a bossa nova ainda é o ritmo brasileiro a fazer mais sucesso no exterior. Por isso, me impressionou que ela não seja maioria no seu disco. Até me surpreendi de encontrar nomes como Paulinho da Viola e Dolores Duran. Como você conheceu essas canções?
Estrella – Eu conheci essas canções através da afeição e da devoção, que me invadiram desde o começo. Ao escutar o repertório, não precisei perguntar quem eram. Depois fui conhecendo-os pouco a pouco, fui conhecendo detalhes e fui procurando informações, mas o mais importante é que, quando o mestre Fernando Trueba colocou essa seleção, ela foi direto para a minha alma, e eu quis me apropriar dela, quis me entregar a ela, e isso é o que eu pretendia, não sei se conseguirei estar à altura, mas sei que elas entraram no meu coração e nunca mais sairão.

DISCOGRAFIA – Existem planos de show no Brasil? Datas?
Estrella – Sim, temos planos de apresentar o disco no Brasil e em outros lugares do mundo onde tenho muita vontade de compartilhar este repertório. Eu gostaria que as pessoas se apropriassem disso, quanto mais, melhor. Claro, que o deixassem entrar nas suas casas, nos seus corações, nas suas festas, nos seus carros, nas suas famílias. É um disco para compartilhar, é um disco feito com a alma, é para Amar em Paz.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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