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“Caetano, venha ver aquele preto que você gosta”. A frase dita por Dona Canô ao filho Caetano Veloso em um dia qualquer acabou tornando-se um ícone da amizade dele com Gilberto Gil, o tal “preto” que estava na televisão.  Meio século depois, eles seguem celebrando a vida e a arte que construíram sempre juntos, trocando informações, influências e acordes.

Como dois irmãos, Gil e Caetano construíram obras que, apesar de independentes, refletem histórias escritas em conjunto. Do toque de João Gilberto à explosão de Jimi Hendrix, passando pelos agudos de Dalva de Oliveira e pelos balanços da música latina. Isso tudo será conferido na turnê Dois amigos, um século de música que chega hoje, 14, a Fortaleza. Por email, Caetano falou sobre suas expectativas para mais este encontro com Gil. Mais um entre tantos que já aconteceram e outros tantos que ainda vão acontecer.

DISCOGRAFIA – Queria começar pela montagem do show. Como pensaram o repertório, o que queriam mostrar, por que só voz e violão.

Caetano Veloso – Foi só com voz e violão que tocamos juntos há 21 anos, na turnê Tropicália duo. Foi com nossos violões que conhecemos a música um do outro. Tivemos poucos dias para definir repertório e ensaiar: eu estava ainda fazendo Abraçaço por aí. As ideias que vieram foram quase todas adotadas de cara.

DISCOGRAFIA – No que toca à música, o que você mais admira em Gilberto Gil?

Caetano – Justamente a musicalidade nata. Ele é um artista da música muito maior do que eu. Coisa que vi desde que o conheci em 1963. O violão dele é um capítulo na história da nossa música popular. Seu senso do ritmo, uma delícia para a alma.

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DISCOGRAFIA – O primeiro disco que você assinaram juntos foi lançado há 46 anos. O que mais mudou nessa unidade “Gil+Caetano” ao longo desse tempo?

Caetano – Que disco era esse? (o disco é o Barra 69) Mudar a gente sempre muda. Mas a essência da música de Gil permanece basicamente a mesma, No palco, vejo-o em Salvador desdobrando a bossa nova; em Londres, improvisando horas de vocalise e violão harmônico-rítmico. Ele é um mestre eterno. E meu espanto diante dele não muda.

DISCOGRAFIA – Você já lançou alguns discos em parceria com o Gil. Também lançou com Gal, Bethânia, Chico, Maria Gadu, Mautner, David Byrne. E agora esta nova turnê vai render mais um disco em parceria. Existe alguém com quem gostaria de dividir um trabalho e não teve oportunidade? 

Caetano – Nunca penso nisso. Os artista da música que mais admiro me parecem sempre acima das minhas possibilidades. Todos os encontros que tive – com Gil, com Milton, com Chico, com Mautner, com Donato, com Beta, com Gal, com Elza, com mil gentes – foram oportunidades em que me senti presenteado pelo destino.

DISCOGRAFIA – Entre seus trabalhos em parceria, um destaque são os Doces Bárbaros, que é uma celebração de amizade, baianidade e afinidades musicais. Existe vontade de sua parte em voltar a reunir esse quarteto para um novo trabalho?

Caetano – Já voltamos a nos reunir, acho que no começo deste século. Adoro as canções que Gil e eu fizemos para esse projeto que nasceu de Bethânia. No show de agora, fazemos, São João, Xangô Menino e Esotérico. Volta e meia o repertório desse grupo sonhado reaparece.

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DISCOGRAFIA – Depois de 50 anos de carreira, a expectativa do público pela obra de vocês tornou-se bem grande. E como fica isso para você? Existe uma preocupação de responder a uma expectativa na hora de apresentar um novo trabalho?

Caetano – Fizemos tudo de modo muito modesto e simples. Nem sei como as plateias dos primeiros shows na Europa, em que eu estava totalmente despreparado, gostaram tanto do que viram e ouviram.

DISCOGRAFIA – Indo além da parceria na música, a amizade de Gil e Caetano é um das poucas verdades incontestáveis que se sabe. Se essa amizade fosse virar um filme, que cena não poderia faltar?

Caetano – Nosso encontro na Rua Chile, em Salvador, ao lado de Roberto Santana.

DISCOGRAFIA – Antes desse show com o Gil, seu último trabalho foi um olhar sobre a Bossa Nova, a partir de um viés roqueiro (Estou certo?). De que forma esse Abraçaço dialoga com esse novo show com o Gil?

Caetano – A bossa nova é foda é rock sobre a saga heroica da bossa nova. Gil fez recentemente um show (Gilbertos) em que ele ressuscitou a força central da bossa. Meu rock é teoria, o show de Gil era batalha na prática. Um dos mais altos momentos da música brasileira moderna. Quando ele toca Odeio comigo agora, a canção reúne as duas dimensões.

DISCOGRAFIA – Em 1992, durante a turnê Circuladô, você deu uma entrevista em Fortaleza e comentou a música que se produzia no Brasil da época é que a tendência “atual do brasileiro é de complacência, de se deixar levar pelo caminho mais fácil, pelo sentimentalismo mais banal”. Olhando o que se produz hoje, você acha que essa tendência se confirmou? E que projeção você faz agora para daqui a alguns anos?

Caetano – Não me lembrava disso. Agora vejo o sentimentalismo banal ser base da energia de muitas áreas de criação da nossa música. Mas prefiro os experimentalismos toscos e ultramodernos do funk carioca.

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DISCOGRAFIA – Para alguém que cria um conceito em torno do disco, pensa numa estética sonora, que pensa numa unidade para o álbum, é frustrante ver que a tendência do consumo da música é mais pulverizada, com downloads de faixas muitas vezes fora da ordem, ou selecionando uma ou outra faixa?

Caetano – Dá saudade de ter o LP, olhar a capa, ler as letras, seguir a ordem. Mas ouvir música é bom de todo jeito. O pessoal da nova geração nem tá aí pra essa saudade nossa.

DISCOGRAFIA – Que artistas ou discos você tem ouvido ultimamente?

Caetano – Pedro Miranda, Joanna Newsom, Alice Caymmi, Filipe Catto, Anitta, James Blake…

DISCOGRAFIA – Para alguém que foi exilado, teve canções censuradas, sofreu patrulha ideológica, como você vê o Brasil de hoje? Com tantas denúncias de tantos lados, ainda é possível acreditar na política?

Caetano – Claro que é. Temos de ser corajosos e criativos diante da crise. Denúncias de corrupção significam que elas podem ser destacadas e denunciadas. Têm seus limites. A política não vai morrer porque há corruptos. Dá trabalho, mas isso mesmo que a gente tem de querer.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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