©Rama de OliveiraReconhecido como um dos maiores patrimônios da literatura no mundo, Fernando Pessoa teve apenas um livro publicado em vida. Trata-se de Mensagem, coleção de 44 poemas épicos que reconstroem um pedaço da história de Portugal. A realeza, as grandes navegações, os mitos e cenários cheios de castelos e cavaleiros muniram o poeta natural de Lisboa, que concluiu a obra apenas um ano antes de falecer em 1935. Sua intenção, após este primeiro, era lançar outras obras, como o Livro do Desassossego, assinado pelo heterônimo Bernardo Soares.

Décadas depois, Mensagem chegou às mãos do artista baiano André Luiz Oliveira que, despretensiosamente, começou a musicar poema por poema. Esse trabalho começou a chegar ao público em 1986, com o disco também batizado Mensagem. Foram 12 músicas interpretadas por brasileiros como Gal Costa, Ney Matogrosso e Zé Ramalho, mais duas pelo próprio André e outra com a fadista portuguesa Glória de Lurdes. A saudosa Elizeth Cardoso (1920 – 1990) também entrou neste time, interpretando a faixa O desejado.

O projeto, que completa 30 anos, acaba de ganhar reedição luxuosa reunindo os três volumes da série (que, juntos, completam os 44 poemas), mais dois DVDs com imagens de estúdio, além de uma revista de fotografias feitas por Rama de Oliveira e uma edição em capa dura do livro de Pessoa. Mergulhado no universo profundo do autor de Guardador de Rebanhos, André Luiz embalou tudo isso numa elegante caixa de madeira. O formato faz alusão ao próprio poeta, que guardava seus escritos num baú de madeira, hoje pertencente à Biblioteca Nacional de Lisboa.

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Ao longo do tempo em que musicou a obra de Pessoa, o compositor e cineasta seguiu contando com colaborações importantes para seu projeto. No segundo volume, lançado só em 2003, 13 poemas vêm embalados nas vozes de Zeca Baleiro, Cida Moreira, Gilberto Gil, Edson Cordeiro e outros. Lançado nos 70 anos da obra, André Luiz definiu seu esforço como uma “travessura atlântica lítero-musical” além de um “dever estético e cívico”. Essa travessura continuou em 2014, com o terceiro volume, que traz Fagner, Zizi Possi, Claudia Leitte e António Zambujo no elenco.

Mais do que musicar poemas, o projeto Mensagem embarca na proposta do poeta de falar em navegações e descobertas que acontecem dentro de cada indivíduo. Isso ganha ainda mais sentido com a obra completa, somada às imagens captadas por Rama de Oliveira, filha de André Luiz. Como uma viagem no tempo, as imagens também remetem a um Portugal glorioso, de castelos e imensas paisagens. É como escreve Fernando Pessoa em Horizonte: “Mais perto, abre-se a terra em sons e cores: E, no desembarcar, há aves, flores, onde era só de longe a abstrata linha”.

[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=BHcEbV9HdKk[/youtube]

Serviço:
Mensagem
O quê: box com três CDs, dois DVDs, livro de poemas e revista de fotografia
Versal Editora
Quanto: R$ 299,60

Bate-pronto:
DISCOGRAFIA – Como foi seu primeiro contato com a obra de Fernando Pessoa?
André Luiz – Foi quando ouvi a música de Caetano Veloso É proibido proibir no final da década de sessenta. Ele declamava o poema D. Sebastião no meio da música e fiquei muito impactado. Corri atrás de descobri o poeta.

DISCOGRAFIA – Qual era a relação de Pessoa com a música? Ele era um apreciador dessa linguagem?
André Luiz – O pai dele apreciava muito música e chegou a escrever críticas na época. Provavelmente ele deve ter ouvido música em casa e, já adulto, gostava de ir ao teatro ouvir ópera. É que a palavra era a sua música. A força da palavra era imensamente superior e a música passou um pouco desapercebida em sua vida. Para os meus ouvidos a poesia dele é pura música.

©DISCOGRAFIA – Queria saber sobre o processo de composição dessas melodias. Quanto tempo levou, qual foi mais difícil, mais fácil.
André Luiz – Nunca existiu exatamente essa questão de difícil ou fácil. Elas “baixaram” em mim com a naturalidade de um vento que sopra uma vela de barco. Às vezes calmaria, às vezes tempestade, mas sempre seguindo naturalmente para a sua finalidade última, “melodificar” o poema. Não medi o tempo que passei compondo essas músicas, quando acordei haviam se passado trinta anos e o livro estava inteiramente musicado, gravado e agora oferecido ao público. Não passei trinta anos compondo só o Mensagem, e sim para realizar a proeza de gravá-los da forma que queria. Entre essas composições fiz dezenas de músicas com letras minhas e de outros parceiros e gravei dois discos África Brasil e Ser Fã.

DISCOGRAFIA – Como você não poderia contar com a opinião do próprio Pessoa, de que forma você foi avaliando o trabalho de composição? Alguém foi importante na avaliação desse trabalho?
André Luiz – Nunca necessitei buscar aval de alguém, a minha segurança era absoluta e a minha severa autocrítica me assegurava isso. Mas o aval sempre vinha implicitamente no acolhimento incondicional das músicas pelos intérpretes que convidava para interpretá-las.

DISCOGRAFIA – Como aconteceu a seleção de vozes dessa trilogia?
André Luiz – Algumas vezes, no meio da composição já me vinha uma intuição de quem iria convidar para cantar. Outras, descobria depois de pronta.

DISCOGRAFIA – Seu primeiro volume de Mensagens é de 1986 e o segundo de 2003. Qual o motivo desse intervalo de quase 10 anos?
André Luiz – Primeiro porque nunca quis tornar esse projeto uma obsessão de vida, quero dizer que aceitei com respeito o tempo dele, deixei que se manifestasse no seu tempo, sem pressa, sem stress. Segundo, porque não é fácil realizar um projeto dessa envergadura sendo eu um compositor desconhecido, sem pensar em mercado, etc. E terceiro por que tinha meus projetos de vida além da música, como no cinema e outros. Um projeto como esse só poderia ter feito dessa maneira, pelo empenho de muitas pessoas como Luna Alkalay coordenadora e Deco Gedeon produtor, e o voluntarismo de dois empresários que o bancaram o Sr. Eugênio Staub e Zero Freitas.

DISCOGRAFIA – De que forma as fotos de Rama de Oliveira dialogam com as melodias que você criou para a obra de Pessoa?
André Luiz – As fotos dialogam profundamente com as músicas, os poemas e comigo mesmo por que Rama é minha filha e é testemunha desse processo criativo desde os primeiros anos de vida. Ela nasceu em Lisboa.

DISCOGRAFIA – No último volume de Mensagem, você se despede da parceria com Fernando Pessoa. Que sensações você teve ao concluir esse trabalho?
André Luiz – Sensação de alívio muito grande. Projetos que ficam no acostamento amarram a vida. Foi muito bom concluir esse trabalho. Estou respirando essa sensação de espanto e alegria imensa com bastante prazer para que a ficha vá caindo bem devagar, no ritmo em que realizei a obra que muitas vezes nem acredito que realizei. Uma sensação estranha de pertencimento a uma linhagem de pessoas que se sentem honradas por estarem conectadas ao poeta e a sua Mensagem.

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DISCOGRAFIA – Depois de quase 30 anos em contato com essa obra, o que você mais aprendeu com o poeta?
André Luiz – Amá-lo cada vez mais.

DISCOGRAFIA – Você entraria em outra empreitada semelhante para musicar a obra de outro poeta?
André Luiz – Acho que não. Se isso vier acontecer será uma surpresa para mim. Costumo dizer que esse era um caso pessoal com ele, Pessoa, com a grandeza poética dele, com a pessoa estranha dele. Mas, não gosto de definir as coisas assim. Prefiro deixar em aberto.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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