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Em uma das passagens mais curiosas do documentário Um Morcego na Porta Principal, Jards Macalé ameaça os diretores de processo. Ele revela que tem medo que o filme desconstrua tudo que ele construiu. “Que é…?”, pergunta o diretor. “A vida, a minha própria vida”, diz o cinebiografado meio acuado. Essa vida a que o compositor carioca se refere é toda misturada a uma obra que, apesar de ter passado dos 50 anos, ainda não recebeu a importância devida.

Apesar de alguns hits bem populares e já bastante regravados, como Vapor Barato, Mal Secreto e Movimento dos Barcos, poucos são os que ligam estas canções ao seu autor. E mais, em 47 anos de carreira discográfica, ele tem pouco mais de 10 discos, onde estão muitas regravações, tributos e releituras. Ainda assim, trata-se de um trabalho primoroso, instigante e tão profundo de significados que parece não se esgotar. Isso fica notório no box Anos 70.

Chegando junto com uma série de lançamentos que escancaram a alma inquieta de Jards Macalé, a caixa lançada pelo selo Discobertas reúne um punhado de pérolas valiosas. Nela estão os dois primeiros LPs do músico – Jards Macalé (1972) e Aprender a Nadar (1974). O primeiro, veio na cola de Transa, álbum de Caetano Veloso, em que tocou e fez direção musical. De alma roqueira, o disco é dividido com a guitarra sem precedentes de Lanny Gordin e com a bateria pulsante de Tuti Moreno. Em contraponto à crueza do álbum de estreia, Aprender a Nadar traz orquestrações de Wagner Tiso e Perinho Albuquerque, além de músicos como Robertinho Silva, Chacal e Canhoto. A escritora cearense Ana Miranda, então casada com Macalé, também comparece na faixa abertura.

Se as duas obras inaugurais de Jards já são, por si, valiosas, o mais precioso de Jards Macalé – Anos 70 está nos dois volumes da coletânea Raro & Inédito. Auto-explicativos, são 24 registros que estavam guardados em fitas numa gaveta que há tempos o compositor de Dona do Castelo não mexia. “São duas ou três gavetas. Eu relutei um pouco em mexer nisso, mas depois, ouvindo coisas que não ouvia há muito tempo, gostei de algumas”, revela Macalé em entrevista por telefone.

Entre as revelações desta gaveta, estão registros completamente nus de refino e arranjo para parcerias com Abel Silva, Vinicius de Moraes, Torquato Neto, Jorge Mautner e outros. Até o cearense Fausto Nilo comparece como co-autor de Mulheres no retrato, que teve seu registro definitivo no álbum Let’s Play that (1994). “Fausto é um poeta maravilhoso. Uma pessoa fácil de lidar. E ele também arrisca na poesia dele. Mulheres no Retrato é um risco, bastante diferente das coisas que ele faz”, analisa.

Os dois volumes de Raro & Inédito se completam com outras oito faixas inéditas divididas nos dois primeiros discos da caixa. São registros ao vivo e demos para Anjo Exterminado, Boneca Semiótica, Rua Real Grandeza e outras faixas que trazem a bossa de João Gilberto, junto com a fossa de Maysa, os viagens do Pink Floyd, o teleco-teco de Elton Medeiros, o balanço de Celia Cruz, o rock do Led Zeppelin e outros ingredientes. “Acho bacana que haja essa descoberta. São materiais que, editados, podem alimentar o conhecimento para as novas gerações”, avalia Jards que ficou curioso por descobrir mais jóias guardadas nas suas gavetas.

Serviço:
Jards Macalé – Anos 70
Discobertas
Preço médio: 87,90

Outros Jards:

42948454> Jards Macalé Ao Vivo

Lançado em 2015, o primeiro registro ao vivo de Macalé mistura cações próprias com regravações de Walter Franco (Canalha) e Moreira da Silva (Na Subida do Morro). Luiz Melodia, Thaís Gulin e Zeca Baleiro participam.

42090697> Só Morto

O relançamento do primeiro compacto de Macalé veio vitaminado com 10 faixas bônus. São registros ao vivo para Gothan City, Poema da Rosa, Revendo Amigos e outras. Do compacto original, o blues Soluços é o destaque.

download> Banquete dos Mendigos

De 1974, o trabalho coletivo foi relançado num box triplo em 2015. Feito para comemorar os 25 anos da Declaração dos Direitos Humanos, o projeto traz a participação de nomes como Raul Seixas, Paulinho da Viola, Edu Lobo e outros.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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