Foto: Tiago Calazans/ Divulgação

Por Teresa Monteiro (teresamonteiro@opovo.com.br)

Amante das noites e – claramente – com a “carne de Carnaval”, não é de hoje que tenho conhecimento do Rec-Beat. Festival alternativo realizado em terras pernambucanas, comecei a frequentá-lo no ano 2000, quando ainda oferecia sua programação na lendária Rua da Moeda. Por lá, vi muita, mas muita coisa boa: de Cordel do Fogo Encantado à Karnak, Maria Alcina, Devotos, Textículos de Mary, Maracatu Piaba de Ouro, Quanta Ladeira… Eita, saudade grande!

Numa conversa com o idealizador e coordenador geral do Rec-Beat, Antônio Gutierrez (Gutie), o mote foi a chegada aos 23 anos do festival, que acontece entre os dias 10 e 13 de fevereiro, na rua do Cais da Alfândega (Centro do Recife). Mas também houve espaço para falar de dificuldades, dos artistas/bandas revelados ao longo dessa trajetória e, por fim, a expectativa em firmar o Rec-Beat em um calendário fixo fora de Pernambuco. Confere aí!

Discografia – O Rec-Beat teve início em Olinda como uma espécie de alternativa ao que já era conhecido durante o Carnaval pernambucano. Você almejava estar aqui, em 2018, celebrando mais de 20 anos de trajetória?
Gutie – Quando criei o Rec-Beat durante o Carnaval, em Olinda, não me passava pela cabeça a dimensão que ele iria tomar com os anos. Meu único objetivo naquele momento era me divertir e mostrar um pouco da nova música pernambucana no contexto do Carnaval, principalmente para o público visitante – no caso os foliões de outras regiões do País. Naquele momento, a gente vivia o “boom” do Manguebeat, liderado por Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. A música dessas bandas, e de muitas outras, surpreendia pela originalidade e inovação e era destaque em todas as mídias existentes na época, principalmente jornais e revistas especializadas. Contudo, essa nova música não tocava em rádio e não era encontrada facilmente, circulava mais por ambientes alternativos da cidade. A criação do Rec-Beat, em pleno Carnaval, abriu um espaço, uma nova plataforma, para que essa nova música e o evento atraiu bastante o interesse do público e dos veículos de comunicação. No início, muitos pensavam que o festival era pra quem não gosta de Carnaval. Mas nosso objetivo, desde o início, foi o de ser um complemento à diversidade e pluralidade do Carnaval pernambucano e, com o passar do tempo, as pessoas entenderam isso e hoje o Rec-Beat é uma das marcas registradas do nosso Carnaval.

Discografia – O Rec-Beat saiu de Olinda e transferiu-se para outros locais como a conhecida Rua da Moeda e, mais recentemente, o Cais da Alfândega, ambos no Recife. Essas mudanças foram decorrentes do aumento de público, da falta de incentivos?
Gutie – Sempre foi muito difícil realizar o festival em Olinda, onde ele começou. A cidade, por ser um patrimônio histórico, é cheia de restrições, muitas exageradas. Quando o festival começou a ganhar visibilidade em Olinda, recebemos um convite da Secretaria de Cultura do Recife para levarmos o festival de forma gratuita, ao ar livre, para o Bairro do Recife, para Rua da Moeda, em 1999. A ideia era que o evento atraísse um público jovem para o ainda incipiente Carnaval do sítio histórico. E deu certo. Ali, com o patrocínio da Fundação de Cultura, o festival pôde ser realizado gratuitamente e cresceu de tal forma que a Rua da Moeda se tornou pequena, levando o festival a se mudar para a rua do Cais da Alfândega, onde permanece até hoje e que recebe por edição mais de 100 mil pessoas. E a programação do Rec-Beat, que inicialmente focava a nova música pernambucana, passou a ampliar fronteiras, incluindo a nova música brasileira, a nova música latino-americana, um pouco também da tradição da nossa música, numa mistura de certa forma atraente e surpreendente.

Discografia – Ouvi uma entrevista sua em que você disse que no Rec-Beat “cabe tudo, mas não qualquer coisa”. Queria que você me dissesse os critérios – se é que têm – para participar do festival.
Gutie – Essa é a parte mais difícil de explicar. Os motivos que determinam as escolhas são quase sempre subjetivos, inerentes à cada pessoa. Comigo não é diferente. A programação do Rec-Beat carrega muito a forma como eu vejo/ouço música, uma forma despojada de preconceitos, muitas vezes garimpando ouro no lixo. Busco sempre o que me soa original, verdadeiro, inventivo, experimental, ousado, que pode soar simples ou sofisticado. Em meio a isso, abro espaço também para a tradição, para nomes históricos da nossa música, para aqueles artistas/pessoas que vão deixar um legado para a nossa música. Procuro me colocar sempre no lugar do público, ter em mente o olhar e a percepção da plateia diante de algo novo, valorizo muito a performance ao vivo, a verdade nela contida. Quando eu vejo uma banda ao vivo, imediatamente sei se ela cabe ou não no Rec-Beat. Às vezes nem encontro muita explicação, simplesmente eu sei. Por isso, prefiro programar bandas que eu já tenha visto ao vivo. A programação do Rec-Beat aparenta ser caótica. Mas existe uma lógica naquele caos. Por isso que quando me perguntam o que entra na programação do Rec-Beat, eu simplifico: “cabe tudo, mas não qualquer coisa”.

Discografia – Qual a maior dificuldade em sustentar um festival do porte do Rec-Beat? Você já se deparou com alguma situação mais difícil e pensou que ele não fosse resistir a tantos anos?
Gutie – O fato de o Rec-Beat ser gratuito tem o lado bom e o lado ruim. O aspecto bom é que a gente fica com mais liberdade para montar a programação, não precisamos necessariamente colocar uma banda mais comercial na grade para atrair público pagante e isso deixa o festival mais arejado, com mais frescor. O lado ruim é que dependemos exclusivamente de patrocínios. Nesses mais de 20 anos de existência do festival, realmente este é o momento mais difícil. E não é apenas resultado da crise econômica. A crise política também, de algum modo, distorceu a percepção dos setores público e privado em relação às atividades culturais. As atividades culturais, de um modo geral, ficaram sob fogo cerrado nos últimos dois anos. Mas eventos como o Rec-Beat e muitos outros que já construíram suas histórias, têm força suficiente para superar essas dificuldades e seguir em frente. Nunca fiquei imaginando quantos anos o festival poderia resistir, o foco é sempre na próxima edição. E assim seguimos, passo a passo, alimentando a mesma inquietação do início. A gente só se dá conta do caminho percorrido quando se depara com perguntas como esta.

Discografia – Você tem ideia de quantos artistas/bandas foram revelados ao longo dessas edições?
Gutie – Nunca parei para fazer contas de quantos artistas foram revelados pelo Rec-Beat, inclusive acho isso meio pretensioso porque a construção de uma carreira artística não depende exclusivamente de um festival. Na verdade, depende de talento e um pouco de sorte. Calculo que mais de 600 artistas/bandas já subiram no palco do Rec-Beat. É muito comum ouvir de bandas/artistas depoimentos dizendo que o festival foi um “divisor de águas” em suas carreiras e isso é muito gratificante. O Rec-Beat foi plataforma de lançamento para bandas como Cordel do Fogo Encantado, Baianasystem, Gaby Amarantos, Seu Jorge (que tocou no festival quando estava começando sua carreira solo), Bomba Estéreo (Colombia), Ana Tijoux (Chile), toda a cena musical pernambucana já passou pelo Rec-Beat. Por mais de 14 anos seguidos programamos a música paraense e, nos últimos anos, o festival vem recebendo a nova cena baiana, como a já citada Baianasystem, Russo Passapusso, Ifá, Attooxxa e, este ano, a (cantora e atriz) Larissa Luz.

Discografia – Você tem conhecimento do que é produzido na atual música cearense, para além de Cidadão Instigado, Daniel Peixoto, etc?
Gutie – Acredito que o Ceará, mais particularmente Fortaleza e Sobral, que eu conheço mais de perto, desenvolvem atualmente a melhor política pública para as artes do País, onde a música tem grande destaque. Tive agora em Sobral, no Circuladô – uma feira de música que tem tudo para crescer – e que reuniu vários produtores e programadores nacionais em torno de uma riquíssima cena musical local. Lá vi várias bandas/artistas, como Alice David, Deibe Viana, Colorida, vi uma apresentação visceral de Daniel Groove. Em Fortaleza, cresce e se consolida o Maloca Dragão, que é um festival de artes integradas e faz parte de uma estratégia bastante ampla e sólida do Dragão do Mar de fortalecimento da cultura do Estado, que  já se alinha aos grandes eventos brasileiros e latino-americanos. Essas iniciativas é que nos dão a conhecer a nova produção musical cearense que, em breve, tende a se tornar uma referência no País. Tenho certeza. Nomes como Soledad, Jonnata Doll (que já se apresentou no Rec-Beat), Astronauta Marinho, Camila Marieta, Projeto Rivera… Gosto muito também de Veronica Decide Morrer, Erivan Produtos do Morro e muitos outros que estão se posicionando através de projetos de fomento da nova música cearense. E me sinto muito feliz. Poder realizar uma edição do Rec-Beat em meio a essa efervescência é muito gratificante.

Discografia – Qual a expectativa para essas quatro edições prévias, sendo uma delas no local que foi o início de tudo (Olinda)?
Gutie – Aqui no Recife já tem cinco anos que realizamos prévias do festival, que denominamos “Rec-Beat Apresenta” porque é focada em uma programação somente com bandas novas, emergentes, nas quais o festival “aposta”. Pelo segundo ano consecutivo vamos realizar em Olinda, sendo que neste ano a gente volta para o Centro Luiz Freire, onde o festival nasceu. Em Caruaru é a primeira edição que fazemos a convite da Fundação de Cultura de lá, que tem um projeto de incentivo ao Carnaval de rua. As edições Sobral e Dragão trazem verdadeiramente a essência do Rec-Beat. A programação que fechamos tenta reproduzir exatamente o conceito do festival da maneira que realizamos aqui no Recife durante o Carnaval e reúne as principais cenas musicais do País, representadas por Karina Buhr (Pernambuco), Lucas Estrela (Pará), Larissa Luz (Bahia), Mitú (Colombia, hoje um dos principais nomes da cena musical colombiana), Daniel Peixoto, Colorida e os DJs Viva la Pachanga e Catiguria, ambos do Ceará. Acho importante essas edições prévias porque amplia a possibilidade de mais bandas se associar à programação do Rec-Beatl e traz visibilidade para as bandas e para o festival.

Discografia – Você pretende firmar essas edições itinerantes como parte já de um calendário anual fixo?
Gutie – Penso, sim, em construir um calendário fixo e acho que tudo caminha para isso. Esta parceria com a Ecoa e o Dragão do Mar para a realização do festival em Sobral e Fortaleza tem sido muito estimulante. Está sendo ótimo trabalhar em conjunto, com uma equipe de profissionais incríveis e comprometidos. Adoraria voltar a repetir essa experiência no próximo ano e entrar para o calendário das prévias do Carnaval dessas cidades.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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