* Texto escrito para o caderno de um ano de morte de Belchior, publicado dia 30 de abril

Foi Elis Regina quem deu a senha em 1972. No disco que lançava naquele ano, a gaúcha que tinha hábito de revelar novos compositores decidiu dar crédito a um nordestino de 20 e alguns anos que chegava ao Sudeste com o sonho de ser cantor. “Meu encontro com a Elis foi absolutamente marcado pela generosidade dela, pela qualidade pessoal dela”, é que conta o tal artista, Belchior, em uma entrevista a Luiz Carlos Miele disponível no Youtube. O cearense lembra que estava em São Paulo, numa absoluta pindaíba, quando a maior cantora o Brasil o convidou pra ir até sua casa apresentar umas músicas. “A senhora então mande o carro ir me buscar na hora do jantar”, respondeu o aspirante na tentativa de não perder a viagem.

Usando um violão emprestado pela anfitriã, Belchior apresentou uma série de canções, entre as quais Elis pescou aquelas que mais se encaixava na sua procura. Apenas Um Rapaz Latino Americano estava entre as preferidas da Pimentinha, que pediu desculpas por não gravá-la já que não se sentia à vontade para se dizer “um rapaz”. Desculpas aceitas, ela lançou Mucuripe naquele disco de 1972, o mesmo que tem Atrás da Porta e Casa no Campo. Peça inaugural da parceria de Fagner (melodia) e Belchior (letra), a canção foi uma das quatro composições do sobralense imortalizadas por Elis.

Na mesma visita à intérprete, Belchior deixou para Elis uma fita gravada com o melhor de sua produção até ali. Dessa fita, ela pescou duas pancadas fortes demais para serem esquecidas: Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, apresentadas anos depois no show/disco Falso Brilhante (o mesmo que tinha Fascinação e Gracias a la Vida). Tirando Noves Fora, outra parceria com Fagner lançada à revelia da cantora, o pouco que Elis cantou de Belchior tornou-se clássico e ajudou para que ele se lançasse como intérprete em 1974.

Recentemente lançado em CD e LP, o disco Belchior – também conhecido como Mote e Glosa – era uma carta de intenções que anunciava algo novo e jovem chegando. Mas foi só dois anos depois que essa novidade foi ouvida, de verdade, no Brasil todo. O álbum Alucinação, produzido pelo experiente Marco Mazzola, potencializou tudo que aquele compositor cheio de personalidade trouxe do Ceará. Letras profundamente pessoais, questionamentos sociais à la Bob Dylan, a voz anasalada de barítono e arranjos que transcendiam o folk rock e a MPB.

Velha roupa colorida, Como nossos pais, Sujeito de sorte, A Palo Seco (com arranjo diferente do disco de estreia) e Fotografia 3×4 estão entre as faixas de um disco que segue, há décadas, como um dos mais influentes da MPB tendo suas faixas sido regravadas à exaustão. Abrindo uma década de grande popularidade para o ex-seminarista, Alucinação é pop e profundo numa medida que foi se perdendo nos discos seguintes. Seu sucessor, Coração Selvagem, de 1977, manteve a qualidade e o sucesso, mas, claramente, pesou mais a mão no formato radiofônico. São sucessos deste a faixa título e Todo Sujo de Batom, também lançada no álbum de 1974 – e mais uma vez gravada em Melodrama, de 1987.

Revisitar a própria obra é algo comum em qualquer artista, mas Belchior fez desse hábito uma compensação para uma obra que foi se distanciando dos anseios comerciais. A cada novo disco, mais ambições sonoras e estéticas, mais o público e as gravadoras querendo um novo “Medo de Avião” ou “rapaz Latino americano”. Elas vieram em doses homeopáticas em discos lançados por pequenos selos que já não chamavam mais tanta atenção. Por outro lado, avolumaram-se discos ao vivo, regravações acústicas, antologias temáticas e um álbum como intérprete. Sem nunca ter perdido a personalidade e as referências que chamaram atenção para sua obra nos anos 1970, Belchior seguiu sua toada e deixou um trabalho complexo que ainda tem muito por ser explorado.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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