Da origem simples ao estrondoso sucesso nacional, Nelson Gonçalves precisou lutar muito para se manter no panteão da indústria fonográfica. Sua produção constante de discos, num determinado momento, até teria chamado a atenção de um colega de profissão nascido na América do Norte, impressionado com as mais de duas mil gravações do cantor brasileiro: esse colega era Frank Sinatra. O encontro com “a voz” era uma das muitas histórias que “o boêmio” contava repetidas vezes, mas que carece de provas, testemunhas ou mesmo veracidade – assim como esse número absurdo de canções. Ainda assim, em muitos outros pontos, a vida destes dois gigantes da interpretação parecia se encontrar.

Francis Albert Sinatra e Antonio Gonçalves Sobral eram filhos de imigrantes europeus, nascidos com apenas quatro anos de diferença. O jovem casal Marty e Dolly Sinatra veio da Itália para se instalar na pequena Hoboken, cidade do estado de New Jersey onde tiveram um único filho nascido num penoso parto a fórceps no dia 12 de dezembro de 1915. Marty, analfabeto, se virava como fabricante de cadeiras e garrafas, ou outros empregos. Ao contrário da esposa, mulher forte, exigente e com fama de “boca suja”, ele era um sujeito calado que passou invisível pela vida do herdeiro famoso.

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Em 21 de junho de 1919, no município sul-rio-grandense de Santana do Livramento, era vez de Antonio nascer, filho de um casal de imigrantes portugueses. Ainda pequeno, ele foi levado pelos pais para São Paulo, onde se instalou a família simples que se sustentava com os bicos do pai. Entre muitos outros, um desses bicos era de músico mambembe que tocava em feiras e vendia composições. Quando Antonio começou a mostrar aptidão para o canto, o pai se fazia de cego para acompanhar o filho no violão e garantir uma emoção a mais na plateia que respondia com gorjetas.

A carreira de ambos começou cedo, mas por caminhos diferentes. Fã de Bing Crosby, Sinatra cruzou o Rio Hudson para cantar no bar que os pais mantinham em Nova York. Inicialmente, só ele tinha certeza do próprio talento. A mãe, inclusive, tentou de todas as formas fazê-lo desistir até ser vencida e conseguir, a qualquer custo, uma vaga no trio vocal que viria a se chamar Hoboken Four. Quando o quarteto estreou num programa popular de rádio, o sucesso foi imediato. Em grande parte, esse sucesso se devia à presença do jovem cantor de olhos azuis que foi se tornando um crooner bem popular.

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Para Antonio, o caminho foi inverso. Apelidado desde criança como “Carusinho do Brás”, em referência ao tenor italiano Enrico Caruso (1873 – 1921), já era famoso pela voz, mas precisou se virar para ganhar dinheiro depois de ser expulso da escola – ele jogou um tinteiro da cabeça de uma professora que o chamara justamente de “Caruso”. Uma das profissões que o interessou foi de boxeador (curiosamente, outra das profissões de Marty Sinatra) e até chegou a campeão paulista na categoria meio-médio. Quando decidiu levar a sério a carreira de cantor, achou que Antonio Gonçalves era “nome de dono de armazém” e assumiu o “Nelson”. Em seguida, se inscreveu num programa de calouros para tentar a sorte.

Ao contrário de Sinatra, quando chegou a hora de Nelson Gonçalves cantar no programa de Aurélio Campos, a voz não saiu. Nova tentativa, e nada. Arrasado com o fracasso, ele deu um tempo naquela ideia e voltou a trabalhar no bar que o irmão tinha na avenida São João. E foi lá que ele teve uma ideia torta, mas que acabou funcionando: aprendeu a burlar recibos e montou um caixa dois para tentar a sorte no Rio de Janeiro. Ao chegar na Cidade Maravilhosa, foi bater na porta das rádios e gravadoras atrás de uma chance. Por ser gago (o que lhe rendeu o apelido de “Metralha”), poucos queriam lhe dar a oportunidade de um teste. Se Dolly tentou fazer Sinatra desistir da música, Ary Barroso foi claro ao sugeriu sugerir que Nelson voltasse a ser garçom. Mas ele não era de desistir e seguiu batendo de porta em porta até chegar à RCA, gravadora onde gravou o primeiro disco e teve ótima repercussão.

Musicalmente, Frank e Nelson atuavam em campos equivalentes. Se o primeiro deu voz quase que integralmente aos standards do American Songbook, o segundo lançou  ou deu uma cara própria a muito do que hoje chamamos de “clássicos da música brasileira”, do samba-canção ao baião. O repertório valioso, escorado em arranjos feitos pelos melhores do mundo, fez essas duas vozes de timbres graves brilharem e fazerem escola para muitos que vieram em sequência. Ambos intérpretes, sempre tinham os melhores compositores por perto oferecendo novas canções.

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Ambos boêmios, também tiveram relações íntimas com os bares e boates. Por exemplo, uma das histórias mais famosas de Sinatra foi de quando ele ligou para o Bar Veloso, em Ipanema, para convidar Tom Jobim para gravar um disco em parceria. Curiosamente, foi também num bar – próximo à Rádio Nacional – que Mário Lago sugeriu ao cearense Evaldo Gouveia que mostrasse sua nova composição, Deixe que ela se vá para Nelson Gonçalves, presente no recinto. “Leva lá na RCA que eu gravo”, disse o cantor. Seis meses depois, sem saber se a gravação tinha acontecido, Evaldo estava no banheiro do mesmo bar quando foi chamado pelos amigos pra ouvir no rádio sua música na voz do maior cantor do Brasil da época.

Frank e Nelson souberam aproveitar bem suas oportunidades. Gravaram muitos discos, tornaram-se ídolos populares e ganharam muito dinheiro. Num determinado ponto da vida, ambos também provaram a queda. O brasileiro foi à sarjeta por conta da cocaína que até o levou preso (por tráfico) durante um mês. De Frank não é sabida a mesma atração pelo pó quanto era pelo Jack Daniels. Para o norte-americano, seu período de penúria aconteceu quando começou um tórrido romance com Ava Gadner. Ainda casado com a namorada de infância Nancy (Nelson Gonçalves também foi casado com uma Nancy, a Montez, que era vedete), Sinatra virou um prato cheio para a imprensa quando foi visto com uma das figuras mais populares do cinema. Como resposta, ele saia batendo em jornalistas que perseguiam sua intimidade.

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Por sorte, ambos tinham a música como tábua de salvação. Depois de um tratamento para se livrar do vício e de voltar para São Paulo para “se livrar dos amigos cheiradores”, Nelson Gonçalves foi aos poucos retomando a carreira, voltando a fazer shows e recuperando o tempo perdido. Com o disco A Volta do Boêmio (1967), o retorno estava coroado e ele seguiu a vida com sua quinta esposa, Maria Luísa, e a estrada com uma série de projetos artísticos. Entre eles, dois fizeram bastante sucesso. O primeiro foi uma série de duetos com astros da música brasileira como Tim Maia, Alcione, Fafá de Belém, Milton Nascimento e Lobão. O segundo foi o Ainda é Cedo (1997), disco de despedida em que deu voz aos compositores da cena roqueira nacional como Rita Lee, Renato Russo, Lulu Santos e Herbert Vianna.

Sinatra odiava o rock em seus primeiros anos de carreira. Dizia que era música de más maneiras e poucos recursos, “cantada, tocada e escrita na maior parte por estúpidos e cretinos”. Acabou se rendendo aos gênios dos anos 1960 e gravou o álbum My Way (1969), que além do estouro da canção título, tinha composições de Stevie Wonder, Beatles, Paul Simon e Ray Charles. Décadas depois, aos 78 anos, consagrado como a maior voz do mundo, Sinatra vendeu milhões de cópias, ganhou muito prêmios e tocou em rádios de diversos perfis com aquele que seria seu último projeto. Em dois volumes, Duets era a sua série de duetos com astros dos mais variados quilates. Tom Jobim, Tony Bennett, Bono Vox, Carly Simon, Chrissie Hynde, Willie Nelson…

A lista de convidados de Frank Sinatra, bem como de Nelson Gonçalves, expressam o tamanho do prestígio que construíram ao longo de quase 60 anos de uma carreira que chegou ao fim em 1998. A de Nelson se encerrou no dia 18 de abril, aos 78 anos, e a de Frank em 14 de maio, quando contava 82. Nestas datas, ambos sofreram um ataque cardíaco e morreram. Na letra de My Way, Sinatra faz um balanço da vida, assume erros, exageros, derrotas, mas se orgulha de ter feito à sua maneira. Com Nelson não foi muito diferente, tendo também pago um preço alto pelas próprias escolhas. No fim das contas, deixaram um legado inesquecível de sucessos, uma marca indelével na música popular e lendas que alimentam os mitos que eles foram.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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