Pode até não parecer, mas a história da Tropicália, enquanto movimento, é bem curta. Ela começa em outubro de 1967, nos festivais de música transmitidos pela TV, e encerra no fim de 1968, quando Gilberto Gil e Caetano Veloso são levados para interrogatório e, em seguida, para o exílio. O que ficou daí em diante foram os ecos de um movimento que modernizou a linguagem musical brasileira incorporando diversas linguagens artísticas, novas estéticas e a linguagem pop. E, claro, aquele volume de liberdade no agir e pensar acabou incomodando os militares que haviam se abancado no poder poucos anos antes.

Se os festivais de música já garantiram uma boa dose de estranheza para aquele grupo guiado pelos baianos, foi quando eles ganharam um programa de TV próprio que ficou ainda mais evidente suas intenções libertárias. O Divino Maravilhoso estreou em 28 de outubro de 1968 e saiu do ar no fim de dezembro do mesmo ano. A apresentação era de Caetano e Gil, com a participação de outros tropicalistas como Gal Costa, Tom Zé, Mutantes e Rogério Duprat, além da presença de artistas que, mesmo fora do movimento, eram próximos da turma, como Jorge Benjor, Jards Macalé, Juca Chaves e as bandas Beat Boys e Os Bichos.

O Divino Maravilhoso deveria ser a consagração dos tropicalistas no meio que eles escolheram para lançar as ideias do movimento. Foi em 1967, no III Festival de Música Popular Brasileira, na TV Record, que eles borraram os rótulos levando os roqueiros argentinos Beat Boys para acompanhar Caetano em Alegria, Alegria e jogaram psicodelia dos Mutantes no baião Domingo no Parque, de Gil. Misturar MPB com guitarra dividiu opiniões, confundiu muita gente e ofendeu os puristas, mas a moda pegou e toda a turma gravou disco no ano seguinte. E foi também em 1968 que Gal Costa lançou na quarta edição do mesmo festival a nova Divino Maravilhoso.

Um ano depois de um disco de canto contido, puxado à bossa nova com inspiração em João Gilberto, Gal aparecia na TV de cabelos crespos, cheia de colares, trajes coloridos cantando de forma explosiva a parceria de Gil e Caetano. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, gritava ela na música escolhida para batizar o programa que foi prometido, um ano antes, para aproveitar a popularidade daquela turma tropicalista. Numa época em que Elis Regina e Jair Rodrigues tinham o Fino da Bossa, Roberto, Erasmo e Wanderléa dividiam o Jovem Guarda, e várias estrelas da MPB – Geral Vandré, Simonal, Chico Buarque… – se revezavam no Frente Única, os baianos também levaram sua proposta para a TV Record. A escolha era perfeita, já que foi ali onde o Tropicalismo ganhou fama pelos festivais.

No entanto, após alguns desentendimentos, a proposta do programa – que poderia se chamar “Banana Especial”, para um “ícone” muito utilizado pelos tropicalistas – para a Globo e foi indicado o nome de Zé Celso Martinez, do Teatro Oficina, para a direção. A presença do dramaturgo responsável por obras polêmicas como O rei da Vela e Roda Viva foi um dos principais pontos de discórdia entre os responsáveis pelo programa e um dos patrocinadores da atração, a Rhodia.

Meses se passaram com o impasse, até que outra TV resolveu bancar o programa, a Tupi. E logo ficou provado que aquela aventura era bem perigosa. Com direção de Fernando Faro e uma equipe que contava com nomes como Antônio Abujamra e Cassiano Gabus Mendes, o Divino Maravilhoso era uma anarquia chocante capaz de arrepiar até os mais modernos. No ar sempre às segundas-feiras à noite, o programa iniciou com um Caetano de peito nu cantando Saudosismo, uma bossa irônica que proclamava um “chega” na saudade, até os Mutantes entrarem com suas guitarras elétricas.

“E o programa daí para o fim é o mau comportamento total, caótico nos sons e gestos, alucinação. Desfilam as novas músicas: Falência das Elites, Miserere Nobis, Baby, É Proibido Proibir, Caminhante Noturno, Panis et Circencis, etc. Cada qual se transforma num happening, num pretexto para extravagância, ‘loucuras’”, descrevia a Folha de SP em 30 de outubro de 1968, em matéria reproduzida no site oficial do movimento. Teve ainda Caetano plantando bananeira no palco e preso numa jaula, e Gil encarnando Jesus numa ceia cheia de bananas. Entre muitas cenas como essas, nenhuma seria tão agressiva quanto Caetano Veloso cantando Boas Festas (Assis Valente) com um revólver apontado para a cabeça, dois dias antes do Natal.

Foi demais para tempos de ditadura militar. Dia 27 de dezembro, a dupla de baianos foi levada para depor numa delegacia, depois presa e enviada para o exílio em Londres, de onde só voltou em 1972. O endurecimento do regime e o fim do Divino Maravilhoso decretaram também o fim do movimento tropicalista, que seguiu como um marco na cultura brasileira. São pouquíssimas as informações disponíveis sobre aqueles dias de happening e nenhuma imagem foi preservada, além de poucas fotos. Alguns livros dão conta de que os vídeos do programa foram queimados para não complicar mais a vida dos artistas com o regime. E Caetano só voltaria a apresentar um programa de TV em 1986, ao lado de outro ícone da resistência política: Chico Buarque. Sem a mesma anarquia, mas igualmente livre de amarras e rótulos, Chico & Caetano foi transmitido pela Globo de abril a dezembro daquele ano e recebeu convidados, como Legião Urbana, Tim Maia, Elza Soares, Fundo de Quintal e Tom Jobim. O programa serviu como uma bandeira branca entre a MPB politizada e o canal apontado como apoiador do regime. Eram os novos tempos que chegavam e novas revoluções.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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