Há quatro anos, o disco A Mulher do Fim do Mundo lançou Elza Soares a um novo patamar de uma carreira de mais 60 anos. O álbum, seu primeiro 100% de inéditas, foi arquitetado por uma turma de paulistanos que, desde o início deste século, vem espalhando novas sonoridades pela MPB. Guilherme Kastrup, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Rômulo Fróes estavam entre os envolvidos no projeto que tirou a lendária sambista do seu lugar de conforto e a colocou entre sons caóticos, discursos violentos e batidas modernas.

Essa mesma turma está por trás de Besta Fera, de Jards Macalé. Sendo este disco o primeiro de inéditas do carioca em décadas, a expectativa é que ele fosse tão impactante quanto A Mulher do Fim do Mundo. Embora a produção de Kiko Dinucci e Thomas Harres seja um espetáculo poético e sonoro, algo é preciso ser dito: Macalé nunca teve um lugar de conforto. Desde que estreou com o compacto Só Morto (1970), o carioca já se jogou aos mais diversos leões, compôs rock, blues, samba, bossa nova, escreveu sobre o doce e o azedo, foi regravado por Deus e o mundo, e se regravou à exaustão.

Carregando a cruz de “compositor maldito”, o autor de Vapor Barato buscou sempre manter sua integridade artística e liberdade criativa. Talvez seja por isso que Besta Fera não parece ser um disco que apresenta novidades, mas que potencializa todas as qualidades do compositor de 75 anos. Por exemplo, a mesma melancolia trágica de Obstáculos estava presente em A Dona do Castelo (1974). Da mesma forma, o mesmo som quebrado e mensagem rápida de Pacto de Sangue já estava em Let’s Play That – a primeira traz letra de Capinam.

Mas calma, há muito frescor em Besta Fera. Estar cercado de jovens e cantando novos versos garante a Macalé alguns momentos sublimes, como Buraco da Consolação. A parceria com Tim Bernardes (que também canta na faixa) sintetiza os dois temas centrais do disco, a cidade e o amor. E o faz com estrema sensualidade e leveza (“Você não via que o mundo está podre porque estava cego de amor”). E se Meu amor e Meu Cansaço não economiza no sentimento derramado (“Faça o que quiser do meu corpo, minha boca, o que quiser”), Trevas pinta a degradação das grandes cidades tomadas pela angústia e pela fumaça.

Reunindo as poesias de Gregório de Matos, Ezra Pound (adaptada por Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos), Clima, Ava Rocha e Rodrigo Campos, e as voz imponente e necessária de Juçara Marçal (na caymmiana Peixe), Besta Fera traz as ideias pós-tropicalistas do velho Macau para os anos 2000, sem de fato representar uma guinada na carreira. “Nem quero que saibam o valor das minhas canções. Se boas ou más, pouco me importam. Elaborei com meu calor e nesse trabalho eu levo a flor”, avisa Macalé em Valor, gravada em 1981, mas só agora lançada. Sem simpatia, concessão ou novas expectativas, ele apenas mostra suas canções e prova que não deixou de ser senhor do seu ofício.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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