Por João Gabriel Tréz

Maria Alcina surgiu para o público brasileiro em 1972. Voz poderosa, performance corporal singular, entoou os versos de Fio Maravilha, composta por Jorge Ben Jor, no Festival Internacional da Canção daquele ano. Antes disso, porém, houve a menina que brincava de fantasiar no quintal em Cataguases, Minas Gerais – imagem mental esta que a artista referenciou em diferentes ocasiões ao longo da entrevista ao Vida&Arte. Personagem de si mesma, a mineira foi, também, a cantora da boate carioca Number One que aprendia a se destacar no palco, a artista censurada pela ditadura militar ou ainda aquela que viu o novo em si a partir do encontro com a música eletrônica. Foi muitas até chegar nessa que, hoje, completa 70 anos.

DISCOGRAFIA – Remetendo à sua infância, como era o interesse por arte na vida da menina mineira que ajudava a família?
Maria Alcina – Que eu me recorde bem, para mim é uma coisa que foi natural, de ser uma menina brincando de teatrinho no quintal, chamando os amiguinhos para ver alguma coisa que eu ia falar, brincando de professora, essa coisa de criança despachada. Eu sempre fui uma menina que brinquei muito. No quintal, na rua… Isso foi a minha formação do sentimento, do lúdico, da fantasia. Outra coisa que eu acho muito importante nessa perspectiva é a escola, que tinha música. Tinha essa parte de arte, principalmente a música. Meu quintal era da porta da cozinha até a beira do rio que passava, era enorme, e eu sempre observei o tempo, as frutas. Junto da escola, tudo isso ajudou a desenvolver o que já tinha de mim.

DISCOGRAFIA – Houve um ponto de virada que fez com que esse interesse em arte virasse, de fato, uma carreira?
Maria Alcina – Eu não tive esse pensamento. Fui no fluxo dos acontecimentos e das pequenas descobertas dentro da minha idade. Fui me desenvolvendo dentro de tudo que me era oferecido. É claro, a gente via os artistas. A televisão chega na cidade e íamos no vizinho ver a televisão, aí ver tudo isso acontecendo de fora pode fazer passar pela cabeça, sim, essa outra vida. Isso faz parte do sonho. Mas fui seguindo o fluxo dos acontecimentos. Teve uma pessoa muito importante, meu primo, que chamava Pedro Paulo, que me levava muito para o lado da fantasia. Ele era mais velho do que eu, jornalista, e me levava pro mundo me informando dos artistas, cantores, de Hollywood. Eu trabalhava na fábrica – sempre trabalhei, sou da geração que ajudava a família desde pequena – e ele passava lá em casa e me levava para a fábrica. Era o caminho todo, até a porta de lá, falando de cinema, dos artistas. Parecia quase uma vida paralela, vida da fantasia. Eu morava em Minas, fui para o Rio de Janeiro aos 17 anos. Em Cataguases, desenvolvi todo esse aspecto da infância, da juventude, sempre cantando onde tinha possibilidade. Eu tinha, por causa do meu primo, contato com escritores, poetas, participava de exposições, via pintura, poesia. Tudo que acontecia na minha cidade me chamavam e eu participava. A minha formação artística se dá em Cataguases, na escola, nos parques, cantando no parque da Igreja. Eu cantava e me desenvolvia. Me lembro perfeitamente de querer cantar na igreja por querer cantar, desenvolver, estar na música.

DISCOGRAFIA – Quando Fio Maravilha estourou, sua voz e seu visual chamaram atenção. Qual era o impacto de início, para o bem e para o mal, de ter essa figura?
Maria Alcina – Causou impacto, claro, e até hoje causa impacto em várias situações, principalmente a parte sexual – as pessoas ainda perguntam se eu sou homem ou mulher. Não é só a questão da voz – a minha é bem peculiar, é de contralto, rara em mulheres -, tem toda a figura, o jeito de cantar. Não tem como, pareço uma cachoeira, não tem como frear. Eu sou muito doida! Eu sempre utilizei, desde o Fio Maravilha, uma parte teatral. Aí volta para aquela menina que brincava no quintal de teatrinho. Acho que é isso, todo meu trabalho na música tem uma referência de teatro, de personagem. Eu canto, mas sou uma personagem, no sentido de que enquanto eu canto dá vontade de andar para tal lado, vontade de ser uma palhaça, mesmo que não combine. É o lado cachoeira, parece um bicho que tem dentro e deságua. Esse tipo de temperamento causou impacto desde que eu cheguei. Na apresentação do Fio Maravilha, eu trouxe o jogador. Quando ele faz um gol, ele pula, dá o soco no ar, essa comemoração clássica. Busquei ver jogadores, prestar atenção, para interpretar a música e a narrativa do gol. Foi pesquisa, foi teatralizar aquele som, aquele ritmo, aquela letra. Causou impacto porque saiu do padrão e isso me ajudou muito. No que causa impacto, se passa o momento de ser uma novidade, mas já muda o mercado, os artistas.

DISCOGRAFIA – É curioso porque vi algumas entrevistas nas quais você falava que não se identificava no começo com o visual, falava “essa não sou eu”. Como foi assimilar e dar conta disso?
Maria Alcina – Eu fui para o Rio sem conhecer a cidade, teve todo o momento de buscar onde dormir, onde cantar. Eu andava totalmente à vontade, jeans, tênis, camiseta, era um moleque. Já cantando, quando eu vi tudo aquilo em mim – a perna de fora, os transparentes, muito sensual -, eu não me vi. A referência que eu tinha de mim era de ser batalhadora. No espelho, me olhando, eu chorava, dizia “quem é essa?”. Mas teve um dia que eu me olhei e falei: “Não sei quem é essa, mas vamos investir”. Deu no que deu, eu vi que tinha outra pessoa a se desenvolver ali. Antes do Fio Maravilha, eu cantava na boate Number One e tive dois figurinistas na época – foi na boate que eu fui vista pelo Solano Ribeiro, que era na época diretor dos festivais da canção. Lá era uma boate de pessoas elegantes, chiques, e se eu chegasse lá sem algo que me destacasse na linha do palco, eu poderia não ter a possibilidade de chamar atenção. Investi junto com meus figurinistas, tudo que eles criavam eu usava, então fui desenvolvendo a Maria Alcina: a voz chamava atenção, eu era muito magrinha e com roupas muito diferentes. Fui descobrindo que o palco é um lugar para se ter fantasia… E aí volta ao meu quintal! (risos) É tudo no inconsciente, quando eu brincava, menina, eu nem sabia. Já mais adulta, fui aprendendo e até hoje faço esse resgate e volto a lembrar que eu brincava.

DISCOGRAFIA – Na ditadura militar, seu visual e seu jeito levaram a proibições e vetos a você e sua obra. Como foi encarar essa censura, o que pensava disso?
Maria Alcina – Houve, sim, uma censura. Fui tirada do ar durante 20 dias, respondi a um processo. Assim, para mim, eu fazia o que eu sabia, eu não estava agredindo. Era a Maria Alcina cantando, fazendo do meu jeito. Tem pessoas próximas que falavam para ter cuidado, era em plena ditadura. Isso foi em 1974. Mas eu continuei fazendo do meu jeito as coisas, mas foi pelo meu jeito que tudo aconteceu dessa forma. Eu fiquei muito impactada, você está ali trabalhando e nunca pensa que pode te acontecer alguma coisa assim. A consequência é que você vira no meio uma pessoa que pode causar um problema. Demorou bastante (para normalizar). Sempre fui muito bem recebida por todos, mas teve um tempo que eu não conseguia gravadora e, hoje, eu penso: “será que tem a ver?”, porque fica uma marca. Aí eu tomei noção, mas nem tanto. (risos) Hoje eu penso que é algo que já passou, foi uma coisa que me pegou no impacto, mas não ficou nada… Você vê até que eu tenho dificuldade de falar. É um momento da minha vida que ninguém tocava no assunto.

DISCOGRAFIA – Após alguns anos mais afastada, sem gravar, nos anos 2000 você volta aos estúdios em diferentes projetos a partir de diferentes encontros. Como foi esse momento?
Maria Alcina – Eu tenho um ponto de referência que é o grupo Bojo. Quando eu encontro eles na música eletrônica, quando a Warner relança os meus CDs, começa a vir uma coisa da cena independente, que é onde eu começo a transitar através do trabalho musical com o grupo. Nós gravamos um CD porque houve um show muito bom em um projeto do Sesc Pompeia que reunia artistas que já tinham um tempo na carreira com outros. Teve a Elza Soares também, por exemplo. É o meu encontro com a cena independente. Eu não vinha gravando, estava totalmente fora, então eu ia para onde me convidavam. Isso é uma questão da minha independência. Consegui uma gravadora, mas na hora de gravar não deu certo, me tiraram, aí pensei que ia largar esse trem, não deu certo. Mas aí uma cantora me chama, vou lá e canto. Nunca fui esquecida pelos colegas, jornalistas, programa de televisão. Eu falo que eu sou a vira lata da música brasileira. A porta tá aberta, eu vou lá! E quando eu preciso, eu peço. Foi assim que eu fui me reconstruindo.

DISCOGRAFIA – Para marcar os seus 70 anos, será lançado o disco Maria Alcina In Concert. Como foi pensada essa comemoração?
Maria Alcina – O maestro Ederlei Liruci me convidou para me apresentar com a orquestra SP Pops Symphonic Band, é um projeto dele. Aí meu produtor teve a ideia de gravar, não deixar passar, então gravamos o CD e o DVD. Vamos ter o lançamento do CD no primeiro semestre e do DVD no segundo semestre. O CD ficou pronto hoje, tá fresquinho, igual a um pãozinho quentinho! É a primeira vez que canto com orquestra, maestro, e celebrando meus 70 anos de vida! Você vê que é uma trajetória bonita em termos musicais, vários contextos. O maestro Severino Filho foi fundamental na minha carreira. Na boate Number One, ele que fez a minha direção musical e aí, quando eu chego no Fio Maravilha, já estava muito segura. Agora, o maestro Ederlei faz esse convite e sai um trabalho estupendo, com meu repertório desde o começo. É uma consagração.

DISCOGRAFIA – Você sente que foi reconhecida o suficiente?
Maria Alcina – Nunca achei que vivi nada fora do padrão de uma vida a ser vivida, no sentido de que todas as pessoas, nas suas profissões, têm vários momentos. Sempre tive cada um deles com alegria, bom humor, rindo das situações, para poder lidar naturalmente. A única coisa pela qual eu sempre batalhei foi pelo meu jeito de cantar, que também é um jeito válido. Se soava diferente, é porque era diferente. Por isso eu batalhei, sim. Isso é muito importante e é para isso que a gente está aqui, que a gente é artista. Sou do canto, do teatro com a música, sempre fui reconhecida assim, caso contrário não chegaria até aqui, a esse momento maravilhoso que estou vivendo. Tudo faz parte da profissão. Fiz tudo com muita alegria. E faço. Como ainda tenho coisa para fazer! É uma felicidade estar junto com a música, o público. Só tenho uma coisa a fazer: agradecer a todas as pessoas que me ajudaram a chegar até aqui.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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