Foto: Rogério Vieira/ Divulgação

De onde vem a voz? Da garganta? De deus? De alguma outra entidade além da compreensão? Fato é que nem sempre a combinação de oxigênio, músculos, cordas vocais é suficiente para justificar o som que se transforma em canto. Virgínia Rodrigues é um desses casos. Sua história já foi contada inúmeras vezes. Ex-manicure, filha de empregada doméstica, foi descoberta por Caetano Veloso durante um ensaio da peça Bye Bye Pelô, do Bando de Teatro Olodum. Encantado, o compositor pegou aquela voz pra si, deu um banho de loja e formatou para os mais importantes palcos do mundo.

Depois de três discos dirigidos por Caetano, a baiana de Salvador seguiu seu caminho próprio que agora, aos 22 anos de carreira, ganha um novo capítulo. Toda Voz é uma Mulher é o sexto trabalho de Virgínia Rodrigues e o segundo produzido pelo cantor, compositor, pesquisador da cultura africana Tiganá Santana. Ela o conheceu na casa de um amigo que não via há tempos. “Ele deve estar arrependido até hoje”, brinca Virgínia, antes de uma risada que confirma a intimidade entre dois apaixonados por música e candomblé. “Ele me conhece muito e a gente é muito parecido musicalmente. Eu tenho um carinho muito grande por ter o Tiganá na minha vida”, completa.

O valor da parceria de Virgínia e Tiganá foi bem representado em Mama Kalunga (2015). Mais ainda no dueto em Sou Eu, peça do gigantesco maestro Moacir Santos com letra de Nei Lopes em que eles se irmanam na sutileza, na intimidade e no amor em seu sentido mais amplo. Quatro anos depois de um repertório primoroso voltado apenas para compositores negros, Cada Voz é Uma mulher reúne narrativas femininas vindas de cinco países: Angola, Cabo Verde, Moçambique, Portugal e Brasil. Na verdade, esse era um projeto que Tiganá Santana planejava gravar. Quando a colega o pediu ajuda em um novo projeto, ele passou para ela como um presente.

Acaba que Cada Voz é Uma Mulher dá continuidade a Mama Kalunga numa perspectiva política de valorizar uma parcela de compositores que fica à margem. “Eu tive muita dificuldade por que não conhecia muitas compositoras mulheres. Não conhecia a Luedji Luna, a Aline Frazão não sabia que era compositora, Lenna Bahule também não conhecia. A compositora com quem eu tinha mais intimidade era a Ivone Lara, que eu adoro”, admite Virgínia acrescentando que começou mirando apenas jovens compositoras, proposta que acabou se ampliando.

Sonoramente, o disco segue a linha estética traçada pela baiana de Salvador desde a estreia. Se há um clima erudito que banha de luxo a interpretação das nove faixas, há também uma brejeirice popular que já se mostra na faixa de abertura, Sumaúma, da angolana Aline Frazão. E mais ainda em Vedete da Favela, da escritora e poetisa mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977). E há também a voz abençoada de Virgínia Rodrigues, com os agudos que remetem às grandes divas do gospel. Diva por si só, ela sabe dar relevância a cada sílaba, entregando cada nota em sua melhor forma. Asas, de Luedji Luna, é uma boa mostra disso (“Pra que te quero asas se tenho ventania dentro”).

E se é pra ter um destaque em Cada Voz é Uma Mulher, seria Ter Peito e Espaço (Sara Tavares/ João Pires/ Edu Mundo). Sem pressa, como é do feitio de Virgínia Rodrigues, ela se cerca de clarinetes e clarone (tocados com a mesma suavidade por Joana Queiroz) para explicar como nascem as canções (“É preciso abrir a oração, do juízo haver libertação, por fogo na casa, deixar arder, tirar a roupa e deixar ver”). Essa música representa muito do que a cantora queria com esse repertório: “Parte do que eu quis falar foi homenagear as mulheres, falar de amor, de poesias e de leveza”, explica quando nem tudo parece leve. “Quando a gente pensa que o negócio melhora, só piora. Eu juro que acreditei que estava melhorando. Mas o povo nordestino é seu próprio algoz. Ele permite que lhe maltratem com certas atitudes. Eu, sinceramente, estou muito preocupada. Claro que também não estou com medo. Eu entrego a deus e aos orixás, e sei que nosso povo está protegido por eles. Meu disco dialoga com a liberdade. É uma mensagem pro povo da minha raça. Espero que as mulheres se sintam homenageadas por que o disco foi feito para elas. É um disco de canção, de poesia, pra que a gente fique mais leve”.

Serviço:
Virgínia Rodrigues – Cada Voz é Uma Mulher
Participações de Mayra Andrade e Lenna Bahule
9 faixas
Natura Musical
Preço médio: R$ 29

Confira a discografia completa da Virgínia Rodrigues:

Sol Negro (1997)
A estreante já se apresenta com um disco que rendeu críticas elogiosas nos EUA e na Europa. Produzido por Celso Fonseca, sob supervisão de Caetano Veloso, o álbum teve participação de Djavan, Gilberto Gil e Milton Nascimento.

Nós (2000)
Com direção artística do padrinho Caetano Veloso, o disco traz uma seleção de canções feitas para blocos afros baianos, como Olodum, Araketo e Ilê Ayê. Interpretado com o rigor estilístico de Virgínia, Mimar Você teve boa repercussão.

Mares Profundos (2004)
Encerrando a trilogia dirigida por Caetano, o álbum homenageia os afrossambas de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Lançado simultaneamente no Brasil, América do Norte e Europa, o disco traz ótimas releituras de Bocochê, Tempo de amor e Labareda.

Recomeço (2008)
Voltando a olhar para o Brasil, Virgínia lança pela Biscoito Fino uma seleção de canções brasileiras acompanhadas apenas pelo piano de Cristovão Bastos. Beatriz, Todo o sentimento e Canção de amor, entre outras, soam simples e refinadas.

Mama Kalunga (2015)
Com produção de Tiganá Santana, Virgínia Rodrigues seleciona um repertório que passeia pelo orgulho da negritude e a miscigenação religiosa. Nos Horizontes do Mundo (Paulinho da Viola) e Sou Eu (Moacir Santos) são os destaques.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles