No Brasil, 59% das crianças de famílias com renda superior a cinco salários mínimos frequentam creches, e 9% estão em busca de uma vaga. Ao olhar para as famílias com renda de até dois salários mínimos, a situação é bem diferente. Apenas 26% das crianças frequentam alguma creche – bem abaixo da meta de 50% estabelecida no Plano Nacional de Educação –, e 34% estão em busca de uma vaga. E essa desigualdade, que já começa nos primeiros sopros de vida, só tende a se alargar ainda mais — uma vez que essas crianças que são deixadas para trás tem menos chances de resgatar o tempo perdido.

Os dados são da pesquisa Primeiríssima Infância: Creche, realizada pelo Ibope Inteligência e pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, apresentados durante o VII Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância, em Fortaleza. O evento foi realizado pela Fundação, em parceria com a Universidade Harvard, com a Faculdade de Medicina da USP e o Insper – juntos, os institutos compõem o Núcleo Ciência pela Infância (NCPI). EXAME foi convidada a acompanhar a divulgação dos resultados.

Cada vez mais estudos mostram que, para garantir que essas crianças cheguem à fase adulta com plena capacidade de desenvolvimento, é preciso investir nos seus primeiros anos de vida. É na fase chamada de primeira infância — que compreende do 0 aos seis anos de idade — que ocorre o desenvolvimento de estruturas e circuitos cerebrais e a aquisição de capacidades fundamentais para o aprimoramento de habilidades futuras, como aponta o estudo “O impacto do desenvolvimento na primeira infância sobre a aprendizagem”, realizado pelo NCPI.

Estimular o desenvolvimento integral saudável das crianças nessa etapa da vida garante que as próximas etapas sejam mais prósperas, e elas passam a ter maior facilidade para se adaptar a diferentes ambientes e de adquirir novos conhecimentos. E esse processo não tem a ver só com educação — ele começa ainda na gravidez, com a criança recebendo todos os nutrientes necessários na barriga da mãe.

No Brasil, conforme aponta o estudo do NCPI, algumas pesquisas prévias já mostram que baixo peso ao nascer, prematuridade, retardo no crescimento e infecções nos dois primeiros anos de vida são alguns dos fatores relacionados a desempenho cognitivo inadequado e maior taxa de evasão da escola. A renda baixa e a escolaridade precária dos pais também influenciam nesse desempenho, uma vez que as crianças dessas famílias têm registrado pior desenvolvimento da linguagem e da cognição.

O caminho para reduzir a desigualdade

Para tentar impedir que as crianças mais pobres do país continuem sendo deixadas para trás logo no início da vida, especialistas defendem que é preciso começar a investir nelas o quanto antes. O economista americano James Heckman, vencedor do Prêmio Nobel em 2000 e professor da Universidade de Chicago, mostra em algumas pesquisas que, quanto mais cedo o investimento for feito, maiores as taxas de retorno proporcionadas. O investimento com maior retorno é aquele realizado no pré-natal, em seguida os investimentos nos primeiros anos da infância (de zero a três anos), na pré-escola (de quatro a cinco anos), na educação escolar e, por fim, na capacitação profissional. Os retornos dos investimentos na gestação chegam a ser três vezes maior do que os do último, que já são realizados na fase adulta.

A especialista em educação Claudia Costin, que é diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais no Rio de Janeiro, da Fundação Getúlio Vargas e ex-diretora sênior para educação no Banco Mundial, acredita que é preciso priorizar as famílias de baixa renda quando o assunto são as vagas nas creches. “O Brasil tem um bom cadastro de quem são as famílias abaixo da linha da pobreza, basta olhar para as que recebem o Bolsa Família, e elas devem ser priorizadas”, afirma Costin.

A economista Ana Lúcia Lima, que foi facilitadora e consultora técnica da recém lançada pesquisa sobre creches, concorda que esse é preciso priorizar para reduzir desigualdades. “Nós naturalizamos e nos acostumamos com essas diferenças. E as pesquisas estão mostrando que investir na educação de zero a três anos tem grandes chances de ajudar a romper esse ciclo”, afirma a economista.

Investimento que traz resultado

Investir nas crianças tem se mostrado o caminho para uma sociedade mais próspera, e uma das melhores maneiras de reduzir a desigualdade, já que as chances de retorno são muito maiores. O pediatra Daniel Becker, que é diretor do Centro de Promoção da Saúde (Cepads) da UFRJ e um dos criadores do programa Saúde da Família, cita o economista James Heckman para falar como investir na infância supera a dualidade entre equidade e eficiência que muitas vezes atormenta os gestores públicos que trabalham para reduzir a desigualdade. “Investir na redução da pobreza muitas vezes é muito custoso e tem pouco resultado, porque a estrutura dessas pessoas já é muito viciada por opressão e baixo desenvolvimento, o que faz com que esse recurso seja usado de forma pouco eficiente”, diz Becker.

Então, destinar recursos para o desenvolvimento das crianças é como ajudar a combater a pobreza antes que ela já se consolide na vida delas. “É uma forma de superar a dualidade clássica do político, que quer ter resultados daqui a quatro anos, quando ele estiver se reelegendo. E o investimento na primeira infância dá resultado no curto prazo, com famílias mais felizes, crianças rendendo mais na escola, boas fotos, e também mais cidadania e uma sociedade mais capacitada a longo prazo”, afirma Becker.

No artigo Investir no desenvolvimento na primeira infância: Reduzir déficits, fortalecer a economia, o economista James Heckman, Nobel de Economia em 2000, afirma que uma pré-escola pública de meio período, destinada a crianças de baixa renda, pode gerar um benefício de 48.000 dólares por criança para o povo, de acordo com analistas do Chicago Child–Parent Center. Ao chegar aos 20 anos, as crianças têm maior chance de concluir o ensino médio e menor chance de serem presas. O retorno estimado sobre o investimento é de sete dólares para cada dólar investido. Outro levantamento, do programa Perry Preschool, mostrou que o retorno sobre o investimento na primeira infância pode ser de 7 a 10% ao ano, levando em conta o aumento da escolaridade e do desempenho profissional, além da redução dos custos com reforço escolar, saúde e gastos do sistema de justiça penal.

A busca por impacto

A enfermeira e sanitarista Márcia Machado, que é pró-reitora de Extensão da Universidade Federal do Ceará e PhD em Saúde Pública, tem trabalhado com crianças no centro das políticas públicas e ressalta a importância de testar os programas antes de pensar em escala. Em comunidades de Fortaleza, a pesquisadora está buscando por estratégias que ajudem a resgatar o vínculo da família com a criança. Ela tem descoberto que orientar as mães a beijar seus filhos todos os dias, abraçar e olhar nos olhos, além de dicas sobre como brincar como as crianças, têm melhorado tanto a autoestima da mãe quanto as trocas de afeto e cuidado. O trabalho conta com visitas de agentes comunitários, que distribuem um guia de orientação para essas mães, e com envio de mensagens de texto via celular para as famílias, com dicas e conselhos sobre como lidar com as crianças.

Ela ressalta, porém, que desenvolver política pública não é como seguir receita de bolo. Cada comunidade tem necessidades específicas e reage de forma diferente às iniciativas, então, é crucial testar os programas antes de colocar em prática. “É preciso pensar tanto em efetividade quanto em impacto. Nós não temos a prática de testar antes para saber se é factível adotar uma intervenção em larga escala. Quando não se faz isso, o risco é imenso”, diz Márcia Machado. “Há uma decepção muito grande por parte da população, que tinha criado um entusiasmo, e um desperdício do dinheiro público”, afirma a pesquisadora.

A especialista também salienta que, apesar das peculiaridades de cada família, é possível implementar políticas de larga escala. “A escalabilidade é possível, sim, e os testes mostram que é possível adaptar projetos para diferentes regiões e culturas, respeitando as formas como as redes se articulam. O teste é importante para criar essas adaptações de projetos, que já têm uma experiência adquirida”, diz Márcia Machado.

A busca por impacto se tornou negócio em alguns lugares do mundo, com agentes do mercado financeiro criando ferramentas que possibilitem o investimento. A gerente de parcerias para o setor privado do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Luciana Aguiar, cita o exemplo dos social impact bonds, que são como títulos que condicionam os retornos ao nível de impacto proporcionado por uma iniciativa, muitas vezes desenvolvida pelo setor privado.

“É uma forma de pensar num direcionamento do setor privado para o atendimento ao interesse público. Isso quer dizer que o setor público vai perder em termos de retorno? Não, quer dizer que se abriram novas oportunidades de negócios muito mais alinhadas com a perspectivas de impacto social”, diz Luciana Aguiar. Alguns desses títulos já estão sendo emitidos em projetos pilotos no Brasil e a lógica é simples: quanto maior o impacto, maior o retorno.

Fonte: Revista Exame

About the Author

Valeska Andrade

Formada em História pela Universidade Federal do Ceará e em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especialista em Cultura Brasileira e Arte Educação. Coordenou o Programa O POVO na Educação até agosto de 2010. Pesquisadora e orientadora do POVO na Educação de 2003 a 2010, desenvolveu, entre outras atividades, a leitura crítica e a educomunicação nas salas de aula, utilizando o jornal como principal ferramenta pedagógica. Atualmente, é professora de história da rede estadual de ensino. Pesquisadora do Maracatu Cearense e das práticas educacionais inovadoras. Sempre curiosa!!!

View All Articles