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Uma carta do escritor Mário de Andrade (1983-1945) ao poeta Manuel Bandeira (1886-1968), mantida em sigilo desde 1978, quando foi doada pela família de Bandeira ao acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, na zona sul do Rio,  tornou-se pública e veio à tona. A ordem para divulgá-la foi tomada pela Controladoria-Geral da União (CGU) em 9 de junho, após processo com base na Lei de Acesso à Informação que se estendeu por quatro meses.

A orientação sexual do autor de Macunaíma e um dos ícones do Modernismo brasileiro é debatida há muito tempo. Embora o escritor tenha dado indícios em outras cartas e em sua obra, como no conto Frederico Paciência, nunca houve uma conclusão, já que em nenhum momento Mário admitiu publicamente a opção. O teor da carta – uma das 15 trocadas entre os literatos entre 1928 e 1935 – não foi divulgada até hoje supostamente por ser o único documento em que ele admitiria a homossexualidade.

Leia um trecho da carta abaixo:

Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria para nós ambos, para você, ou para mim, comentarmos e eu elucidar você sobre minha tão falada (pelos outros) homossexualidade. Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar um muito de exagero que há nessas contínuas conversas sociais não adiantava nada pra você que não é indivíduo de intrigas sociais.

Pra você me defender dos outros, não adiantava nada pra mim, porque em toda a vida tem duas vidas, a social e a particular, na particular isso só me interessa a mim e na social você não conseguia evitar a socialisão absolutamente desprezível de uma verdade inicial.

Quanto a mim pessoalmente, num caso tão decisivo para a minha vida particular como isso é, creio que você está seguro que um indivíduo estudioso e observador como eu, ha-de estar bem inteirado do assunto, ha-de tê-lo bem catalogado e especificado. Ha-de ter tudo normalisado em si, si é que posso me servir de ‘normalisar’ neste caso. Tanto mais Manu, que o ridículo dos socializadores da minha vida particular é enorme. Note as incongruências e contradições em que caem: o caso de ‘Maria’ não é típico. Me dão todos os vícios que por ignorância ou interesse de intriga são por eles considerados ridículos e no entanto assim que fiz de uma realidade penosa a ‘Maria’, não teve nenhum que caçoasse falando que aquilo era idealização para desencaminhar os que me acreditam nem sei o quê, mas todos falaram que era fulana de tal. Mas si agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discrição social, tão absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua (veja como tenho minha vida mais regulada que máquina de precisão) e se saio com alguém é porque esse alguém me convida. Si toco no assunto, é porque se poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades platônicas, só minhas.

Ah, Manu, disso só eu mesmo posso falar. E me deixe que ao menos para você, com quem apesar das delicadezas da nossa amizade, sou de uma sinceridade absoluta, me deixe afirmar que não tenho nenhum sequestro não. Os sequestros num caso como este, onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis.

Eis aí os pensamentos jogados no papel sem conclusão nem consequência. faça deles o que quiser.”

“E o mais bonito, Manu, é que o Oswald não é meu amigo, fique sabendo. Eu é que sou amigo dele. Não venha me falar tudo o que você já me tem falado sobre ele. Já sei de tudo e aceito muito. Porém, conhecendo cotidianamente o Oswald, posso muito, mas muito particularmente afirmar pra você que ele não tem nobreza moral. E o que é mais triste é que ele mesmo já põe reparo nisso e está se utilizando disso pra viver. Me desculpe falar estas coisas pra você e creio que você me conhece de suficiente amizade pra saber que eu era incapaz de estar criando uma intriga ou apenas uma prevenção de você contra ele.”

 

 

Biografia

Escritor, poeta, crítico literário, musicólogo, folclorista e ensaísta paulistano, Mário de Andrade escreveu seu primeiro livro, “Há uma gota de sangue em cada poema”, em 1917. Em 1922 participou da famosa e polêmica Semana de Arte Moderna e lançou “Paulicéia Desvairada”. Entre suas obras também estão “Amar, verbo intransitivo: idílio”, “Macunaíma” e “Belazarte”. Mário dirigiu o Departamento de Cultura do município de São Paulo de 1935 a 1938, período em que planejou a Biblioteca Municipal. Com Rodrigo Melo Franco de Andrade, criou em 1936 o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Viveu no Rio de Janeiro de 1938 a 1941, quando foi professor de Filosofia e História da Arte.

 

 

 

 

 

Texto: Eduardo Sousa | Imagem: Internet