O que é que você quer com o sentimento de se expressar para o outro? A pergunta não foi feita pelo repórter, mas rasgada diante deste como um desafio para reflexão. “É um silêncio? É um compartilhamento de beleza? É uma conscientização como ser humano? É nada? É dinheiro? Eu escrevo porque preciso silenciar”, diz a escritora Natercia Rocha, competindo com a música urbana que entrava pelas janelas do apartamento. Com dois livros publicados, assume a escrita e a leitura como refúgio no primeiro momento. Depois, tornam-se parte da adaptação ao contexto. “Refúgio não. Por que refúgio? Adaptação, do ajustamento”.

A porta da sala já estava aberta quando cheguei, pontualmente, às 14h daquela sexta-feira. O ambiente parecia ter vida própria. O rádio ligado, muitos livros, quadros, desenhos, paredes riscadas. Ideias soltas, escritas à mão, criatividade no concreto. Francês. “Estudo os verbos assim”, ri. Entende-se que a força inventiva vem da janela lateral, com o Santuário Sagrado Coração de Jesus, no Centro de Fortaleza, como vista e o mar no horizonte.

Jornalista, com passagem pelas principais Redações do Ceará, Natercia Rocha publicou “Rumo Norte” em 2008 – relançado três anos depois com o Prêmio Otacílio de Azevedo, de Reedição. Um apanhado de fotografias e poemas, frutos do período em que foi correspondente no sertão. Um olhar sensível, de fácil identificação com um Brasil rico em vida na região conhecida pela seca. “Contos de Ir Embora” (2014) carrega fôlego próprio, com ilustrações de Audifax Rios (1946-2015) e manifestação poética de Alves Aquino – O Poeta de Meia-Tigela.

A fortalezense, criada em Juazeiro do Norte, conta nesta entrevista ao Repórter Entre Linhas, os momentos pontuais de sua carreira como escritora. De redações, que escrevia ainda na época de colégio, passando pela experiência jornalística e chegando aos inspiradores eventos que renderam as publicações.

Imagem: Celso Oliveira

Imagem: Celso Oliveira

A escrita acalma, faz uma catarse no pensamento. (…) quanto mais eu fui tendo consciência dessa missão de trabalhar a palavra escrita ou a imagem, eu vejo que é um processo de entendimento do eu. – ROCHA, Natercia.

Quando a escrita literária entrou na sua vida?

Natercia Rocha: Lembro que eu tive um professor de português, em Juazeiro, ele sempre me incentivava a escrever e eu vi que tinha uma sintonia, um sentimento bom. As redações me davam aconchego. Não sei como é a vida das outras pessoas, mas nem sempre elas têm tanto aconchego, tranquilidade e tanta harmonia no dia a dia, seja na infância ou na adolescência. A minha não foi das mais tranquilas. E esses momentos eram de muita felicidade. Lamento demais não ter guardado esses textos. Agradeço a Deus por ter morado em Juazeiro porque aquela realidade foi o aprendizado da minha vida.

Depois, entrei no Jornalismo, e quando você sai para escrever, você tem que ter um respeito pelas pessoas, pelas coisas, pelas situações. Escrever é… Como degustar uma comida muito bem feita, refinada. Quando escreve, você tem que inebriar o outro, fazer com que ele tenha prazer com aquela leitura. E como é que você faz isso? Com a verdade do que está ao seu entorno, com a verdade dos seus sentimentos. Há histórias, na ficção logicamente, que não precisam ser verdadeiras, mas elas precisam ser honestas.

“Rumo Norte” é um apanhado de poemas e fotografias. Quando você percebeu que tinha um livro?

Natercia: Em 2005 fui ser correspondente em Sobral. Eu escrevia as matérias e fotografava. Foi maravilhoso porque aí eu mergulhei, me dediquei muito. O jornal tinha um motorista e onde a gente passava eu pedia para parar e fotografava da estrada. Na câmera, sempre trazia fotos de pôr do sol, de sertanejos, de natureza, chuvas, arco-íris. Tinha uma realidade paralela naquele universo que podia ser bem dura. Junto àquela experiência havia outro lado que talvez fosse o refúgio, a coisa mais poética mesmo.

Os poemas vieram numa época de transição de vida que precisava escrever em outras linguagens. Você faz a matéria e o teu sentimento tá ali. E aí, vieram muitos poemas. Em 2008, vi que ali tinha um livro. Eu pedi demissão do jornal e fui passar nove meses em Jericoacoara. Havia um trabalho lá e eu também ficava montando o livro. Foi um longo período de observação, de ajuste e limpeza. Fiquei pensando como é parecida a construção de um texto, de um livro, com o trabalho de um escultor. Ele vai limpando até ficar visualizado direitinho.

E como foi o processo com “Contos de Ir Embora”?

Contos-de-Ir-Embora-baixaNatercia: Comecei a escrever os contos em 2005 quando precisei de um tempo de repouso, provavelmente pra fugir daquela realidade. Fiquei boa, voltei a trabalhar, passou. Em 2011, precisei parar novamente e retomei os contos. No ano seguinte, tive um computador que foi roubado e perdi tudo – tinha outro livro de poesias pronto também. Entraram no meu apartamento, com chave, e levaram os aparelhos eletrônicos. A situação mudou minha vida. É muito ruim quando você não tem consciência que pode perder um computador, então você vai colocando muitas coisas, sua vida vai ficando dentro de um objeto. Foi uma lição pra mim, sabe? Porque minha vida realmente estava dentro de um objeto. Foi Deus dizendo “menos, muito menos”. (Risos). Em 2013, recuperei alguns trechos nos e-mails, fui juntando e escrevendo de novo. O conto “O Diário de Alina Reyes” foi o que mais mudou. Eu quis diversificar a linguagem.

Qual o sentimento que fica depois que o livro está pronto?

Natercia: Eu sou uma mãe tão desnaturada! (Risos) Quando vejo pronto… Você já tem que ter outras coisas caminhando porque as contas não vão parar de chegar no fim do mês. Quando ele fica pronto, você já caminhou tanto que é só mais uma etapa.

Em qual projeto você trabalha atualmente?

Natercia: O projeto se chama “Da Janela Lateral”. Aqui no Centro de Fortaleza a efervescência de gente é muito grande. Eu vim morar aqui por causa desse romantismo mesmo, dessa coisa antiga. Meu espírito é muito velho. Daqui de cima, a gente vê o que acontece lá embaixo e há um choque de realidade. Durante a semana é esse fervor de gente, mas no fim de semana não tem ninguém. E aí, eu comecei a fotografar.

Recorte da vista

Recorte da vista “da janela lateral”. Imagem: Rubens Rodrigues/Instagram

Nesse tempo eu trabalhava muito fora, mas quebrei a perna e tive que ficar alguns dias deitada. Afastei a cama para perto da janela e comecei a fotografar o povo lá debaixo. Peguei gosto. Vi como acontecia coisa, de madrugada, toda hora. Aí virei voeyer, assim, no melhor sentido da palavra. E venho fazendo, tenho um banco de imagens de períodos diversos, desde 2008. Em 2011, que foi no mesmo período que finalizei os textos do “Contos de Ir Embora”, chamei uma amiga e editamos algumas imagens, uma coisa bem amadora ainda. Eu queria fazer um experimento, um piloto. O projeto foi aprovado pelo edital “Que Fortaleza é a Sua?”, da Vida das Artes, e o curta-metragem está em fase de edição. A maior dificuldade é deixar só 10 minutos.

E por que registrar?

Natercia: Eu não sei qual foi o escritor que disse que “se você quer conhecer o mundo, conheça sua aldeia”, e é bem isso mesmo, sabe? A diversidade do que acontece lá fora é impressionante. Tem de tudo. As pessoas que não tem onde dormir… e você vai conhecendo até os moradores de rua. É um exercício de observação. Foram muitos dias acordando às 5 h da manhã, ou antes. Essa relação que a gente faz com as pessoas, você começa a observar. Você não tem uma relação direta, mas é uma relação de… Poderia ser qualquer um de nós.

Vai virar livro?

Natercia: A ideia é essa. Fazer um livro com as fotos, tem muita foto. Ainda não sei se quero usar texto, não sei se precisa. E isso é interessante porque é como se fosse o silêncio dessa janela. De nunca ter ninguém por perto quando tô filmando. É uma observação da solidão mesmo. É um processo da solidão no melhor sentido. Da solicitude, do estar consigo e estender o olho para o outro. De que maneira? Escrevendo, filmando, fazendo a foto, me calando… Acho que já dou uma boa contribuição pro mundo.

Em outra ocasião você me falou que escrevia porque sentia uma angústia. O que você quis dizer exatamente?

Natercia: (Pausa) A escrita acalma, faz uma catarse no pensamento. Por muitas adversidades que já vivenciei, a escrita e a fotografia foram catalizadores. Fizeram transformação. Não que seja uma forma de desabafo, mas quanto mais eu fui tendo consciência dessa missão de trabalhar a palavra escrita ou a imagem, eu vejo que é um processo de entendimento do eu. Entende? É um silêncio, é o processo. Aquela coisa de que o interessante da viagem não é você chegar ao local, é arrumar a mala, fazer todo o percurso. Porque não é que você vá fazer psicologismo nos livros, não, nem tanto o produto final. O produto final é você, é cada um que escreve.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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