3-por-cento-posterQuão longe você iria por uma vida perfeita? A pergunta feita pelo argumento da série 3%, a primeira produção brasileira original da Netflix, sugere um roteiro de possibilidades a partir da distopia. O gênero, mesmo cansado na literatura estrangeira, ainda não ganhou representatividade significante na ficção brasileira. Pelo menos não na tevê.

Longe de ser novidade, o enredo da série criada por Pedro Aguilera com direção de César Charlone (Cidade de Deus) traz jovens residentes do Continente, uma espécie de mundo velho e miserável, para disputar uma vaga no Maralto, a sociedade ideal para onde só passam 3% da população. Uma série de provas marcam esse momento que se estende pela primeira temporada e muito lembra a literatura para jovens adultos que se popularizou nos últimos anos.

Já no primeiro episódio é possível identificar problemas que se agravam nos capítulos seguintes. Num primeiro momento, 3% apresenta um elenco fora de sintonia, perdido em diálogos vergonhosos que nada acrescentam à narrativa. O roteiro não apresenta os personagens devidamente e os atores, em meio a um evidente conflito de direção de elenco, não conseguem despertar empatia.

Mesmo quando recorre ao passado para tentar mostrar quem são os concorrentes a um lugar no Maralto, a série não constrói apropriadamente os personagens. Não cumpre o mínimo. Tirando os conflitos que retratam a juventude negra na periferia e deficiência física, deles não se sabe nada. São pessoas que, pelo que parece, nada viveram nesses 20 anos – idade que os moradores do Continente se tornam aptos para participar do Processo – além do sonho de atravessar o mar. Não há substância.

Ezequiel, o líder do Processo, foge à regra. Interpretado por João Miguel, claramente desconfortável no papel inicialmente, é o fio condutor das possibilidades que permeiam esse universo. Se por um lado, orienta os candidatos no processo seletivo, por outro, é capaz de derrubá-los ou desestabilizar sua própria equipe. A figura autoritária é também a personificação do Big Brother, de Orwell, ou até mesmo do próprio Pan-óptico, de Bentham, conceito de vigilância baseado na disciplina e no controle. O personagem tem seu passado revelado no quinto episódio, intitulado “Água”. Nele, João Miguel contracena com Mel Fronckowiak, atriz com pouquíssima experiência nas telas até então. Pois é ela quem entrega uma interpretação extremamente equilibrada.

As referências são várias. Do clássico Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), passando pelo contemporâneo Jogos Vorazes (Suzanne Collins), 3% se apropria também da obra-prima O Senhor das Moscas, de William Golding, e de filmes ultra violentos para o episódio “Portão”, ponto de virada da trama.

Alguns problemas são corrigidos do meio para o fim da temporada, com o roteiro começando a se amarrar e um ou outro bom episódio que destoa da pavorosa experiência inicial. Ainda assim, muito do eixo criativo precisa ser revisto para a série fazer jus ao selo Netflix que carrega e reivindicar sua identificação com a ficção distópica. A produção pouco lembra o promissor piloto divulgado em 2011 no Youtube e talvez este não seja mesmo o caminho. Falta à série ousadia para cruzar o Processo.

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Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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