Daniela Mercury lançou, em 2015, seu primeiro álbum inteiramente autoral: Vinil Virtual (Foto: Célia Santos / Divulgação)

Daniela Mercury conhece a importância da própria história para a música brasileira. Aos 51 anos, referência no axé music, com mais de duas décadas de carreira e canções enraizadas na memória da cultura popular, faz da música um instrumento político.

Ela retornou a Fortaleza neste sábado, 22, onde apresentou, pela primeira vez na capital cearense, o show Camarote da Rainha, no Iate Clube, entre as velas e o sol do Mucuripe. Em entrevista, publicada neste domingo, 23, no jornal O POVO.Dom, a artista dialoga sobre o processo criativo — que define como caótico — e se emociona ao falar da situação política brasileira, defendendo a necessidade de se buscar um País melhor.

Você lançou dois discos nos últimos dois anos. Qual é o próximo passo?

Daniela Mercury – Eu sempre tenho vários projetos engajados, muitos desenhos. Meu repertório componho continuamente. Algumas canções virão, ainda que tenha uma turnê para cumprir. Eu vou emendando uma turnê na outra. Eu sou muito camaleônica. Cada lugar é um show diferente. Acabei de vir de Portugal, onde fiz três shows diferentes. Eu vou distribuindo as músicas de maneira que o show fique com a dinâmica que o público gosta, pra ser curtido, pra gente ver e pra gente sobreviver, né?

Você participa desse processo do início ao fim?

Daniela – Eu não canso de criar. Eu participo de absolutamente tudo, inclusive dos figurinos. Defino cores, faço todos os roteiros, coreografia. Eu dirijo, pego trechos de coreografias e vou fazendo releituras. Várias coreografias são de coreógrafos convidados, mas enriqueço a movimentação. Meu trabalho coreográfico não é alegórico, não é pra se repetir. É para ver, é conceitual. É um carnaval conceitual. Eu sou intérprete por acaso. É maravilhoso ser um instrumento de criação. A grande diferença é a originalidade. É difícil ser original em um mundo com tantas criações. É tudo feito com muita observação, muito trabalho. Viajo e olho tudo por todas as partes para encontrar uma forma de vestir essas linguagens, de ser particular no meu trabalho. É isso que me faz ser uma artista respeitada porque eu dialogo com o mundo todo. Não dá pra enganar e fingir que tá fazendo uma coisa que é original e não ser. É um trabalho sério. Muito divertido para quem vê e muito sério para quem faz. É muito pautado em pesquisas e no meu próprio ser. Eu sou pensadeira, faladeira, lavadeira. Poetizo tudo. Vou recriando tudo, reconstruindo o que dá e vou desembaraçando, me perdendo. Vou me entendendo. Meu processo é caótico. Eu escrevo até no banheiro. A graça mesmo é criar, fazer o que me der na telha na hora que tiver vontade. Se eu estiver no show e der na telha de cantar outra que não tem nada a ver com aquele momento, eu canto outra coisa.

E esse trabalho de criação é uma forma de se encontrar?

Daniela – Eu não quero me encontrar nunca porque no dia em que eu me encontrar vai ser um tédio. Eu não quero me saciar. A minha alma não vai se encontrar nunca — se é que tenho alma ou só pensamento. Meu corpo não aguenta essa alma, não. Ela é muito abusada. Uma vez me disseram que minha alma tinha 1.500 anos. Achei jovem! Minha alma tem que reencarnar, se não, não tem corpinho que aguente. Não que eu seja especial, acho que todo mundo é assim. A mente é muito ampla. Mas é legal perceber que, com esse caos de influências que estão no meu inconsciente, eu acabo parindo obras que foram importantes para as pessoas. O que é importante é que a gente faça as pessoas felizes, que a gente empodere as pessoas e que elas se sintam representadas. Que a arte possa ser delas também. No disco Vinil Virtual, tem uma parte de América do amor e Antropofágicos São Paulistanos que falo “tua comida comi/ tua língua aprendi”, e “tudo que comi/ tudo que bebi é meu. Tudo que engoli sou eu/ o que é brasileiro ou estrangeiro é meu” no sentido de que eu posso me apropriar de qualquer coisa. Nós brasileiros somos assim. Vivemos em um País imigrante de muitas consciências culturais. O Nordeste é a mulher do Brasil. É a mãe. É o inconsciente. É quem mantém a consciência da gente. E as cidades grandes vão tirando isso. O Brasil precisa muito de arte neste momento.

Por quê?

Daniela – Porque está muito triste. O Brasil tá sombrio, atrapalhado. Atrapalharam a nossa vida, a gente não consegue mais trabalhar. Somos assaltados todo dia com notícias desagradáveis. Isso tira a nossa fé. É um freio para quem tava voando. A gente tava voando e nos derrubaram. Uma geração como a minha que já passou por tantos perrengues, que passou infância e adolescência na ditadura, com inflação, a gente estava insatisfeito. A gente queria andar. Estamos tirando a sujeira de baixo do tapete e pensando como seguir de maneira mais verdadeira. O brasileiro precisa parar de tentar esconder as coisas, jogar seus direitos na cara, ser honesto, ser direto.

Você sempre foi engajada em movimentos da sociedade. Este envolvimento é necessário para o artista?

Daniela – Eu não sou engajada, não. Eu sou o movimento. Eu sou formadora de opinião. Eu sou artista e é artista que faz o movimento. Você vê Caetano e Gil na Tropicália: eu oriento o Carnaval! Eu também tô neste lugar de criadora. Eu estou no lugar da confusão. No lugar de quem pensa, de quem se manifesta, de quem faz as pessoas refletirem, de quem tira a população do conforto, de quem cutuca. Eu também estou no lugar de quem faz sorrir quando tenho que estar, no lugar de quem abraça e acolhe. O meu lugar não é o de “Maria vai com as outras”. Eu sou a Maria que leva as outras, mesmo que isso custe a incompreensão de muita gente. É o jeito mesmo de lidar com a vida. Eu nasci ouvindo “é proibido proibir”, sou filha de quem mandou ir na contramão. A gente tá sempre na contramão do sistema, dos governos. Nós temos que estar no papel de criador, interventor. Foi preciso sair alguém da liderança pra gente perceber onde é que tá a liderança. Quando temos um presidente ilegítimo, não temos representação. Quando a gente acha que já fez o suficiente é ruim. O Brasil tem pressa. Não podemos deixar para os outros. Temos que ocupar este lugar de uma vez por todas. Nordestino sabe muito bem o que é isso porque a gente vive com muito menos. Na democracia, estamos sempre com a migalha. A vida dentro do sistema capitalista é muito mais difícil. O brasileiro ainda não decidiu se é socialista, capitalista ou se é simplesmente católico.

Seu show é político?

Daniela – O amor é o maior ato político que a gente tem pelo País. A arte é amor, é uma tradição humana. O amor nos humaniza, personifica tudo. Então, no momento em que a gente consegue efetivamente ser sincero na arte, nos reiteramos como pessoas culturais e pensantes. Isso já bastaria. Meus artistas são nobres vagabundos deste País. Quem acha que o artista é vagabundo, está certo. Porque artistas são livres.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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