A filósofa afirma que há um descaso com a condição humana, com as instituições agindo de maneira hipócrita e manipulativa

(Foto: Simone Marinho)

Apontando para o crescimento do autoritarismo no mundo, a filósofa Marcia Tiburi alerta sobre estarmos vivendo um tempo de vazios produzidos pelo sistema econômico e político. Entre as consequências, observa-se o descaso com a condição humana e a manipulação midiática. Nesse sentido, uma das grandes contribuições da Filosofia na atualidade tem sido a construção de diálogos. Postura que requer escuta e abertura para ouvir o outro.

Autora de “Ridículo Político” (Record, 2017) e “Como conversar com um fascista” (Record, 2015), Marcia vem debatendo no Brasil o conceito de fascismo, referindo-se a pessoas que não conseguem estabelecer uma conversa e organizam-se à luz do conhecimento paranóico, que entrega certezas e não permite questionamentos. Segundo a escritora, o fascismo acaba por fomentar um contexto de paranoia e delírio.

Em entrevista ao Blog Repórter Entre Linhas, Marcia conversa sobre fascismo, autoritarismo e visão de futuro. A filósofa ministra nesta sexta-feira, 1º, aula aberta com o tema “Diálogos Possíveis”, na escola Porto Iracema das Artes, em Fortaleza. O evento é gratuito e começa às 19 horas.

 

“Não creio que alguém deixe de ser fascista quando chegou a um nível mais elevado de autoritarismo”.

Como a Filosofia se relaciona com o “diálogo possível”?

Marcia Tiburi: A grande contribuição da filosofia para a nossa época é o diálogo. Talvez as pessoas não saibam, mas o que chamamos de filosofia desde a época dos gregos é, sobretudo, uma forma de diálogo. Quando falamos de literatura, estamos falando de texto escrito, mas quando falamos de filosofia o que está em jogo é o diálogo, a presença das diferenças, as visões de mundo, os argumentos que entram em um jogo de linguagem e ajudam a elucidar questões. Dialogar é uma forma mais complexa de conversação porque coloca em cena uma postura ética. Ou seja, não existe diálogo sem escuta, sem abertura ao outro.

É possível deixar de ser fascista? Como se dá esse atravessamento?

Marcia: Quando escrevi “Como Conversar com um Fascista”, o que eu queria era colocar em questão a “fascistização” da sociedade atual. Isso quer dizer que estamos nos tornando gravemente autoritários e andamos expondo isso sem vergonha. Não creio que alguém deixe de ser fascista quando chegou a um nível mais elevado de autoritarismo. Talvez, seja mais fácil evitar que alguém se torne um fascista e isso vai depender de muitas coisas, de processos que envolvem a educação, a cultura onde a pessoa se forma e, às vezes, até um tratamento psicanalítico para aprender a lidar com o próprio autoritarismo.

Como os conceitos de paranoia e delírio se aplicam no atual cenário brasileiro?

Marcia: Em abstrato, fica difícil usar esses termos até porque quando os usamos remetemos imediatamente à psiquiatria, à psicanálise e à psicologia, que os usam em sentidos mais estritos. No entanto, eles podem ser usados em termos filosóficos, que também são complexos, mas que nos ajudam muito mais a interpretar as mentalidades em vigência na sociedade do que padrões puramente psíquicos, ainda que não se possa eliminar esses fatores também. Nesse sentido, o autoritarismo desenvolvido em termos de avanço do fascismo tem algo de delirante. E me refiro à paranoia para que pensemos em um ápice de mentalidade autoritária incapaz de se abrir ao outro e, portanto, de reconhecer seu lugar no mundo e seus direitos.

Tiburi é autora dos livros “Como conversar com um fascista” e “Ridículo Político” (Foto: Simone Marinho)

Você já comentou que no País há uma fabricação da moralidade e jogos de mistificação. Quais as consequências desses processos?

Marcia: Esses processos implicam manipulação midiática da qual se aproveitam as corporações diretamente interessadas, a própria mídia sendo uma delas. As igrejas, o judiciário, o legislativo também se aproveitam. Enquanto isso, a população segue subjugada produzindo e consumindo para a continuidade da exploração geral típica do sistema econômico e político que conhecemos.

O que seria a “Bolsonarização” e a “Dorificação” da política?

Marcia:
São termos usados no meu livro “Ridículo Político”. Por meio deles eu tentei falar desse novo fenômeno político, esse tipo de performance que usa o que seria vergonhoso de se fazer em termos públicos como se fosse uma coisa bacana. O que era patético virou cool, o que era constrangedor tornou-se capital político. Há nessa performance um tipo de populismo levado ao extremo e que age de maneira manipuladora com as pessoas. Usei o nome desses dois personagens porque são constantes em cenas do que chamei de “ridículo político” e representam, de certo modo, um padrão presente em performances de outros personagens públicos.

Em outubro deste ano, uma artista cearense também passou por censura em exposição numa universidade da capital. Em resposta, ela decidiu retirar todos os desenhos da mostra, o que teve uma grande repercussão na cidade. Como avalia os recentes episódios no Brasil envolvendo censura à arte?

Marcia: Ouvi falar desse caso, assim como de vários outros pelo Brasil afora. Organizei um dossiê para a Revista Cult sobre Arte e Autoritarismo para levantar a questão da censura, da manipulação das ideias, do populismo midiático, e da relação do público com as artes a partir de mediações desqualificadas. Não se trata, portanto, apenas de censura. Se trata de desvio de atenção e também de proibição de outras visões de mundo que nos façam pensar. Arte é, de fato, algo muito importante na vida cotidiana, cognitiva, sensível, ética e política. Pena que o moralismo seja tão violento. Mas ele sempre foi uma arma da injustiça e da brutalização do mundo e precisamos estar atentos para enfrentá-lo.

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Vivemos uma época de vazios?

Marcia: Vazio do pensamento. Vazio da sensibilidade. Vazio da ação. Vazios produzidos pelo sistema econômico e político que conhecemos e ao qual chamamos de capitalismo. Em sua fase atual, a neoliberal, o vazio deve ser produzido e alimentado com mercadorias previamente definidas e que vão dos produtos da indústria cultural até as mais diversas formas de comportamento.

Na sua visão de futuro, para onde caminhamos em termos de política, ética e diálogo?

Marcia: Se eu disser “para o cadafalso” vai parecer que faço retórica. Acho que nesse momento precisamos prestar atenção porque o momento é perigoso em termos humanos. Em escala social estamos deixando o autoritarismo e o fascismo crescerem. Há um descaso com a condição humana e com as pessoas concretas, os cidadãos em geral. As instituições têm agido de maneira hipócrita: família, mídia, sociedade, escola, partidos, poderes (do legislativo, ao executivo e ao judiciário) têm manipulado e se deixado manipular. Creio que é preciso agir para mudar isso. É preciso ser otimista na prática por mais que não apareça nenhuma luz no fim do túnel quando paramos para pensar.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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