Fotos: Aurélio Alves/Especial para O POVO

Daniel Ganjaman vai direto ao ponto. Seja no discurso afiado e atento às dinâmicas que movem o País, seja em seu trabalho na música. Nascido Daniel Sanches Takara, em São Paulo, o produtor de 39 anos tem alguns dos mais relevantes álbuns da atualidade sob seu guarda-chuva, de Sabotage a BaianaSystem, sendo determinante na discografia do cantor e compositor Criolo. O paulistano, que também já produziu Mombojó e Nação Zumbi, se prepara para trabalhar com o rapper inglês Jevon.

Apaixonado pela música de Don L e Fernando Catatau, encontrou na cena local uma fonte de arte autêntica e musicalidade plural. E, no novo cenário, o ressurgir do compositor cearense. Ganja, que também é músico e engenheiro musical, esteve em Fortaleza na última semana como um dos produtores e curadores do projeto Porto Dragão Sessions. Ao Blog, ele fala sobre a música do Ceará, o fazer artístico no Brasil, política e futuro.

Você está na produção do Porto Dragão Sessions. Como está sendo esse processo?

Tenho já uma proximidade com artistas daqui que acho que veio em decorrência da migração de alguns músicos pra São Paulo. Foi aí que eu comecei a ter um contato um pouco mais direto com o Fernando Catatau, o próprio Don L também. O começo de tudo foi muito em função do Catatau e o pessoal do Cidadão instigado, né? Então a cena daqui não é exatamente novidade pra mim, mas é óbvio que vindo pra cá, ficando mais tempo, consigo estar em contato com o que acontece de mais interessante na música cearense. Tá sendo uma experiência incrível.

No processo de seleção dos contemplados, eu e os outros curadores, ouvimos umas 140 bandas. O que impressionou todo mundo foi a quantidade de material de qualidade, de fato relevante. Vivenciar isso aqui acaba sendo algo muito especial porque você não tem um contato único com a música, né? Vai muito além, uma coisa da atmosfera da cidade. Tudo isso influencia no que é o resultado, no trabalho de cada artista singularmente.

Você consegue identificar um pouco do cheiro, do sotaque, do gosto, da cor, do calor, entendeu? Da praia. Tudo isso é uma composição que faz com que a música acabe tendo uma identidade muito forte, apesar de ser uma cena extremamente plural. O Ceará é muito conhecido por ser celeiro de grandes instrumentistas e de compositores também da velha guarda. Agora você vê que isso resultou numa cena extremamente plural que eu to tendo a honra de estar inserido.

Alguém específico te chamou mais atenção nesse processo de curadoria? 

Alguém específico eu estaria sendo injusto. O Projeto Rivera eu já conhecia. Conheci quando fui fazer a curadoria do Festival de Ibiapaba. Fiquei muito impressionado não só pelo trabalho, mas também pela força de fazer a coisa acontecer. A organização deles como um time pra colocar aquilo pra andar. Isso foi muito impressionante.

Dos que eu não conhecia, me chamou muita atenção Casa de Velho. Achei incrível. Os outros todos que foram selecionados, acho que a grande maioria eu já tinha tido contato de uma forma ou de outra.

Projeto Rivera conta como foi trabalhar com Daniel Ganjaman

O LPO, que também foi selecionado, é de Sobral e tá fora desse centro de artistas mais conhecidos do Ceará. É também uma questão de dar protagonismo a quem ainda não estava nesse eixo?

Parte desse projeto tem também esse caráter. Acho que sempre o critério, seja ele qual for, vai ser subjetivo.

No caso do LPO, teve uma coisa da gente ouvir e dizer: “Isso aqui é muito interessante”. É um menino que tem um lance acontecendo, musicalmente falando, ele tá antenado com o que tá rolando. É importantíssimo dentro desse projeto ter artistas consagrados e que estão chegando. Com a projeção que acredito que vai ter, cada um acaba puxando o outro. Alguém que vai atrás de ouvir Rivera, Selvagens (à Procura de Lei) ou Daniel Groove, acaba batendo no LPO e curtindo.

E como você enxerga a cena cearense?

Extremamente plural. É uma cena bastante jovem, muita novidade. Você vê que tá todo mundo muito antenado com o que tá rolando. Ao mesmo tempo que tem essa pluralidade toda, cai numa identidade que não é exatamente um ritmo, uma temática de letra. É uma coisa muito sutil, mas que tem uma característica que é reconhecível em todas as bandas. Nem sei dizer ainda o que é, talvez no decorrer do processo todo eu consiga sintetizar isso melhor.

Você sente que tem uma coisa muito cearense, que é muito diferente de Recife, Salvador, que é muito diferente do Belém, do Brasil todo. Você sabe que tem cores aí que são muito exclusivas. Estéticas, atmosferas musicais, são muito exclusivas de cada lugar e o Ceará tem isso um pouco impresso. É uma coisa de valorização, da onda do compositor. Algo que ficou muito esquecido no final dos anos 1990, começo dos anos 2000. Ficou tudo muito baseado no groove, na sonoridade, na estética sonora, e a composição ficou um pouco e lado.

Quem do Ceará você escuta e está sempre no seu radar?

O Don L, sou muito fã dele. É, na minha opinião, um dos melhores rappers do Brasil. O Cidadão Instigado sou suspeito pra falar porque quando eu conheci, fui apresentar pro Rica e pro Tejo que eram meus companheiros no Instituto lá em São Paulo, pra gente lançar o disco deles pelo nosso selo. Falei: “Isso aqui é a melhor parada que tá acontecendo na música atualmente”. Sou super fã. Acho o Catatau um dos melhores guitarristas do mundo, sacou? Ele é incrível! Gosto muito da linha de composição, da autenticidade do trabalho. Quando conheci foi algo completamente inusitado, completamente diferente de tudo. Esses são os que tenho discos na minha coleção.

Nos últimos três anos você produziu o disco do BaianaSystem, o álbum póstumo do Sabotage e o mergulho do Criolo no samba. De alguma forma, essa diversidade toda se conversa?

Como produtor, admiro muito produtores que conseguem passear por diferentes estilos sem necessariamente colocar algo que seja uma marca. É engraçado, né? Porque hoje em dia, quando ouço esses discos, eu consigo entender que eles têm algo em comum. Existe um lance que caracteriza uma produção minha. Às vezes a própria diversidade de estilos tem um pouco essa marca.

Eu acho que o que tem de muito incomum entre esses trabalhos todos que você citou é o jeito de trabalhar. É o jeito de fazer música, de ir pra estrada, o jeito de divulgar, e dentro desse jeito eu coloco muita verdade. É uma forma muito verdadeira, autêntica, de se movimentar. Esses artistas estão entendendo que não existe mais uma cartilha a ser seguida e estão entendendo cada um seu caminho, dando um passo de cada vez e crescendo.

O caso do BaianaSystem é incrível. O Baiana tá abrindo portas pra toda uma cena de Salvador que tá vindo também. Algo muito parecido com o que aconteceu com Recife. O Criolo quando chegou não era o momento que o rap estava muito em evidência. E veio o Criolo, veio Emicida, veio Projota, veio Rashid. Existe uma movimentação em torno desses artistas que obviamente tem a ver com a queda da grande indústria e o emergir da indústria independente, que também tem a ver com a Internet. É toda essa discussão que faz com que as coisas tenham tomado uma ótima mais democrática.

Está mais fácil hoje em dia de entender, o próprio público se conectar diretamente com o artista e entender se aquilo faz sentido pra ele ou não. Os interlocutores são cada dia menos necessários. As bandas estão entendendo a forma de trabalhar, se adequando a isso e, de alguma forma, impondo seu jeito. E isso é maravilhoso.

Quando conversei com o Criolo sobre o Espiral de Ilusão, ele disse que o álbum significa “se permitir a muita coisa”. Seu passeio nos gêneros têm um pouco disso também?

No meu caso, como produtor, tenho que respeitar a verdade do artista. Para mim, o que é o fator determinante se eu vou trabalhar com determinado artista é se eu vou de fato contribuir. Às vezes, artistas que eu sou fã me convidam e eu acabo negando por achar que não tenho como contribuir para aquele trabalho. Eu tenho um tripé de pilares de sustentação ideológica, estética e filosófica que é o punk, o skate e o rap. Foram três pontos que fizeram eu ser quem sou. O rap pelos samples de música clássica ou oriental, indiana. O skate, se você pegar vídeos, existe todo um universo. O punk dialoga com os outros dois. Foi o que determinou como formação de indivíduo e abre espaço pra todo esse passeio.

Álbum de sambas, ‘Espiral de Ilusão’ é sobre se permitir, diz Criolo

Há pouco mais de cinco meses tramitava uma lei de criminalização do funk. O que esse tipo de ofensiva representa para quem produz música no Brasil?

É a síntese do que a gente tá vivendo nesse momento, um retrocesso galopante e perda de direitos fundamentais. Isso caracteriza censura. Vamos discutir qual é a problemático em torno do funk? Ninguém em sã consciência, do olhar pedagógico, vai achar do caralho o que tá sendo dito em algumas músicas. Mas você tem que entender o que está acontecendo, sabe? Esse é o problema do Brasil atualmente, tentar cortar as coisas pelas beirada. Você não vai na espinha dorsal do problema, da problemática do Brasil. Que é educação, saúde, direitos básicos que estamos perdendo.

É muito fácil tratar as coisas assim. Você elimina os direitos básicos e começa a ludibriar as pessoas para elas acharem que os problemas são as consequências. E as consequências são apenas consequências. Acho uma ideia absurda. Até porque você nunca vai conseguir proibir de fato que a música deixe de ser produzida. É uma ideia retrógrada, autoritária, diferente de tudo o que caminhou nos últimos anos. É reflexo do retrocesso que a gente vive no Brasil e no mundo.

A música brasileira já teve um fator revolucionário, principalmente entre as décadas de 1970 e 1980. Há algum resquício disso?

Acho que a gente tá prestes a viver um momento muito parecido por conta de tudo isso que a gente falou. Nos momentos de crise política, ideológica e filosófica, são os momentos em que a arte se alimenta muito disso pra se recriar e servir como combustível de contestação para esse momento. Eu acredito que vamos viver isso agora, e vamos passar um período de médio a longo prazo em que talvez isso venha a ser a tônica do momento.

Você tem um discurso político contundente e estamos em ano de eleição. Como você enxerga esse momento que o País atravessa?

Vejo como talvez o momento político mais intenso, caótico e perigoso que a gente já passou na história desse País. Tem uma série de acontecimentos nos últimos tempos que estão quase servindo como um aval para uma ala de políticos brancos, homens, velhos, ricos e estabelecidos dentro de carreira política no Brasil, fazerem o que bem entendem.

Quando você consegue impedir uma presidente eleita sem que haja um crime de fato de responsabilidade; quando você impedir a candidatura do favorito numa corrida eleitoral por meio de um processo absolutamente questionável; isso é golpe, sacou? A gente tá vivendo um golpe. E golpe não acontece de um dia para o outro. Em 1964 não acordaram um dia e falaram: “é golpe, virou ditadura militar”. Essas coisas vão acontecendo gradualmente. A gente tá vivendo esse momento que é extremamente perigoso, inclusive em função das diferenças do que tinha naquele momento. Em 64 você não tinha muita possibilidade de propagar as informações como hoje.

Estou esperando acontecer uma revolta gigantesca porque eu acho que o povo brasileiro anda muito passivo. Acho que o problema na verdade é esse, tem uma passividade enorme frente a absurdos. E acho que a população brasileira é manipulada num grau a ser estudado, porque não tem como isso. Se você conseguir explicar até para um eleitor do (deputado, Jair) Bolsonaro o que está acontecendo, ele vai ver que é um absurdo. O problema na verdade tá sendo isso: as pessoas estão cegas, surdas e loucas. As pessoas não conseguem se dar conta do que está acontecendo por conta da manipulação do interesse de poucos em detrimento da miséria de muitos.

No meio disso tudo tem as redes sociais que acabam polarizando um pouco os debates. No ano passado, você publicou que estava saindo do Facebook, no seu perfil pessoal, afirmando que a plataforma era “socialmente nociva”. Você ainda percebe as redes sociais dessa forma?

Acredito que o Facebook tá perdendo espaço muito por conta disso. Eu não saí por completo para divulgar os meus trabalhos. Eu saí como rede social pessoal, onde eu expunha muito das minhas convicções para os meus amigos pessoais, minha rede de, sei lá, 1.500 pessoas. Eu comecei a perceber que o algoritmo do Facebook que faz você estar majoritariamente em contato com as pessoas da qual você está alinhado tem um papel muito nocivo porque faz com que você veja as diferenças de uma forma muito radical, sendo que não é esse o papo. Entendeu? Principalmente num momento de muita ilusão, manipulação e ludibriação. A gente tem que entender que as diferenças precisam ser debatidas para esclarecer o que está acontecendo, e o Facebook impede isso. Isso é muito perigoso.

De que forma esses debates políticos atravessam seu trabalho musical?

Entendo política desde a hora que eu acordo até a hora que eu vou dormir. Para mim, qualquer movimentação que envolve o direito de ir e vir ou a minha liberdade, até onde vai a liberdade do próximo, sabe? Esses clichés que a gente entende como parte do convívio social. Tudo isso fatalmente esbarra em relações políticas. Entendo que tudo que eu passo no dia a dia vai refletir no meu trabalho porque eu trabalho com arte. O meu trabalho vai ser influenciado até pela comida que eu como, até por um dia de praia, uma relação pessoal mal resolvida.

A gente vive em um momento de uma tônica política muito forte. Eu entendo como sendo algo necessário nesse momento. Eu deixo de gostar de artistas dos quais eu vejo que politicamente divergem totalmente do que eu penso. Não sei se é um problema, não sei se é uma qualidade. Então estamos caminhando muito para esse momento. Cada dia mais você percebe que existem lados dessa história que politicamente chamam de direita e esquerda. Isso vai estar explícito a cada dia que passa porque é uma questão de interesse.

Tem uma palavra que tá na minha cabeça toda vez que eu tenho que analisar uma situação da qual eu possa ter algum tipo de dúvida, que é privilégio. Acho que as pessoas precisam entender um pouco mais o que significa essa palavra e colocar isso como fator determinante das suas atitudes. Essa questão nunca foi tão discutida no que se diz respeito a racismo, machismo, homofobia, transfobia. Todas essas questões esbarram no privilégio.

Em São Paulo, por exemplo, que o Carnaval tomou uma proporção gigantesca, ouvi relatos de que foi muito mais tranquilo na questão de assédio porque isso está sendo discutido. Está escancarado. Às vezes até por motivos um pouco bagunçados, mas está sendo falado. As pessoas estão se aproveitando também desse discurso, mas está sendo discutido e isso é positivo. Talvez nós estejamos em um momento de plantio, de uma semente que vai ser fundamental pra daqui a 50 anos. Se não começar, a gente nunca vai chegar a lugar nenhum.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

View All Articles