Carolina Maria de Jesus

Por Talles Azigon (da página Poesia Brasileira)

“Eu não sou indolente. Há tempos que eu pretendia fazer o meu diário. Mas eu pensava que não tinha valor e achei que era perder tempo. “
Carolina Maria de Jesus, In Quarto de Despejo.

Há diversas formas de ler um livro. Uma delas é mergulhar recheado de paixão, saborear cada uma das palavras escritas, chorar a cada página, ou sorrir, ou se indignar, ou paralisar de tão perplexo diante do catártico produzido pela obra lida. Assim li Quarto de Despejo, um livro com muitos significados, um livro além de um simples livro. Primeiro, por Carolina Maria de Jesus ser a primeira mulher negra a publicar um livro no Brasil – só esse fato seria importante para o livro ser lido, mas não fica apenas nisso..

Carolina – e sua primeira obra – foi e ainda é alvo de perseguição de muitos críticos, ligados a intelectualidade brasileira. Brancos e ricos, como quase sempre. O exemplo disso foi o recente caso ocorrido em uma solenidade na Academia Carioca de Letras para homenagear Carolina Maria de Jesus. O professor Ivan Cavalcanti Proença fez questão de afirmar que a escritora não deveria ser chamada de escritora, pois sua obra, Quarto de Despejo, é um diário, não possuindo traços de ficção. Ele prosseguiu seguindo a crítica, afirmou falta de habilidades no uso do idioma por Carolina, outra suposta característica inviabilizante para a mesma não ser merecedora do status de artista das letras.

Infelizmente, esse não é um caso isolado. O racismo, o machismo e a homofobia são capazes de interferir, e muito, na não publicação ou validação de diversas escritoras e escritores – por questões de gênero, etnia ou colocação social.

Nessa pequena nota de leitura, rapidamente, vou tentar responder uma questão. Uma não, duas: Por que ler Quarto de Despejo? Vale a pena ler Quarto de Despejo?

Para nos situar, o livro, publicado originalmente em 1960, é escrito em forma de diário e traça o cotidiano de Carolina. O relato acontece em primeira pessoa e a linguagem utilizada, mesmo assumindo em diversas partes um tom confessional e denunciante, não perde em nenhum momento seu tom poético, lírico e literário.

“Estou começando a perder o interesse pela existência. Começo a revoltar. E minha revolta é justa”

Carolina nos apresenta diversas personagens, principalmente apresenta a si e seus filhos. Vamos acompanhando o processo de crescimento deles, dores, anseios, sonhos, os modos como se desvencilham das agruras cotidianas, ou não. Porém, uma outra personagem muito importante nos é apresentado pela escritora: a favela. Aí reside uma das grandezas do livro, lemos o início desse fenômeno social, o maior motivado para o título do livro, a favela de Carolina é um grande Quarto de Despejo.

Porém, há uma grande inovação na escrita de Carolina, não estamos em um espaço romantizado, ou nem nos deparamos com personagens “que vai levando” como na letra do samba do Chico Buarque, muito pelo contrário, não há enfeites, a Favela é a Favela. Cada morador é um ser humano – com suas ambições, desistências e resistências.

Há nesse livro a descrição de uma São Paulo inédita, passando por uma grande revolução, modernização, enriquecendo cada vez mais. São Paulo e sua indústria nos são mostradas sempre por outros escritores como imponente, esplêndida. Mas nem toda a cidade era ou é assim, o livro nos mostra isso.

“Eu classifico São Paulo Assim: O Palácio, é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”

Uma outra cidade, uma outra vida, uma outra história contada de uma outra perspectiva. Ler Quarto de Despejo é ler os relatos e acontecimentos da história a partir do olhar de quem mais sofre com os tais acontecimentos.

Entretanto, existe uma grande preocupação dos leitores comuns de literatura ao pensar na possibilidade de debruçarem-se sobre esta obra. A de que o livro é um simples relatório do real. Não é. Potente em metáfora e em poesia, esse livro é cheio de subversões poéticas da escritora. “Quando digo casa, penso que estou ofendendo as casas de tijolos”, “Deve ser ótimo ir para o céu, mas será que lá tem favela?”. Para citar alguns líricos trechos da obra.

Retomando as perguntas, caso a essa altura você ainda não tenha se convencido. Sim, O Quarto de Despejo é uma excelente obra da literatura, vale cada segundo de tempo investido por você, leitora/leitor. Por ser uma experiência estética, histórica e política. Sem contar no horizonte da diversidade leitora que há de abrir para você após a experiência dessa leitura.

Leiamos Carolina; Leiamos o Quarto de Despejo.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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