Emily Dickinson

Muitas são as mentiras escutadas durante nossa vida. Escutadas e repetidas. Dentre ela temos uma: poesia é coisa de menina. É fato, hoje, as mulheres são as maiores consumidoras de literatura. Contudo, durante muito tempo, a nossa cultura machista as legou somente a esse posto: consumidoras. Não estou dizendo que essa é uma colocação menos importante. Precisamos muito de pessoas comprando e lendo. Ou qual sentido teria o existir da literatura? Porém, literatura só presta de verdade se for um direito de todas e todos, assim como todas as coisas da vida.

Durante um bom tempo, as mulheres não ganhavam atenção alguma no mercado literário. Elas não poderiam ser editoras, livreiras e muito menos escritoras. Mas é a insubmissão a verdadeira energia revolucionária desse nosso planetinha machista. Por isso, muitas, muitas mulheres não se permitiram estar fora nem da literatura, nem da vida.

Uma dessas adoráveis insubmissas é Emily Dickinson. Nascida nos Estados Unidos de 1830, escreveu e viveu sua vasta poesia, buscava publicá-la, não obtendo muito sucesso, nem por isso deixou de produzir. Fazia e costurava à mão pequenos encadernados com sua obra, que distribuía a parentes e pessoas próximas.

Posteriormente, após sua morte, passou a ser uma das poetas/poetisas mais lidas nos EUA, tendo seus versos, trancafiados por tanto tempo nas gavetas de seu quarto, espalhados, traduzidos, divulgados por muitos outros países e idiomas.

Ano passado um filme, A quiet passion, excelente por sinal, retratou muito bem um tanto de sua vida e de sua poesia:

Eu, Talles Azigon, conheci a Emily Dickinson através de um poema traduzido por Manuel Bandeira

Morri pela beleza, mas apenas estava
Acomodada em meu túmulo,
Alguém que morrera pela verdade,
Era depositado no carneiro próximo.

Perguntou-me baixinho o que me matara.
– A beleza, respondi.
– A mim, a verdade, – é a mesma coisa,
Somos irmãos.

E assim, como parentes que uma noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo
Até que o musgo alcançou os nossos lábios
E cobriu os nossos nomes.

Foi paixão! Os pensamentos, os comentários, as pinturas com os versos que Emily vai criando durante sua obra é não só encantador. É musical, envolvente! Sendo um belo modo para quem não está muito acostumado ao gênero poesia iniciar sua grande aventura nesse não reino, nessa anarquia chamada universo dos poemas.

Mais de 1.700 poemas escritos, uma festa para nós leitores, um problema para as editoras: como apresentar Emily Dickinson? Angela-Lago – ilustradora, escritora e tradutora brasileira – nos deu um grande presente. Escolheu alguns dos inúmeros poemas de Dickinson, agrupou em Um Livro de Horas (livro de orações para momentos diversos) e os ilustrou com bordado de iluminuras.

Fantástico, fabuloso, lindo. Um livro, para quem puder adquirir, incrível para se ter na estante, para se ler, reler, tomar um café lendo, mostrar pras amigues, tirar fotinhas e colocar no instagram, mandar para as paqueras. É, sem dúvidas, o livro – pensando livro como objeto de arte, nele todo e em si – mais belo da minha prateleira.

Cena do filme

A configuração escolhida por Angela-Lago, de transformar alguns dos poemas da poeta/poetisa em rezas diversas para horas diversas, encaixa-se tão naturalmente, parecendo até, e isso não é todo antologista e organizador de livros de textos escolhidos capaz de fazer, que os poemas nasceram para ter essa organização:

Para a hora a suportar

Nossa porção de noite suportar,
Nossa porção de amanhecer também.
Nosso vazio, com êxtase ocupar.
Ou ao nosso vazio, o désdem.

Uma estrela aqui, outra ali.
Alguma se extravia.
Aqui névoa, névoa além,
Depois, dia!

Emily escreve sobre as coisas que pode tocar. Ela age como se fosse uma pintora que, ao invés de utilizar-se de tintas e pincéis, utiliza-se das palavras e vai montando verdadeiros poemas-quadros em que a natureza – magnífica, exata, concreta, plausível – pode ser sorvida pelas pontas dos nossos olhos:

Para a hora da tristeza sem razão

A abelha- de mim – não tem medo,
A borboleta eu conheço
A gente toda da mata
Se alegra quando apareço.

Os rios riem mais alto assim que chego.
E brinca a brisa mais louca então.
Ai meus olhos, por tua névoa prata?
Por quê, ô dia de verão?

Esse jeito, porém, de falar de materialidades em um poema, como uma tarde triste de um verão qualquer com suas abelhas, borboletas e riachos, é tido como algo negativo por alguns críticos. Mesmo motivo de críticas para uma outra poeta/poetisa, brasileira, de nome Cecília, também ter sido algumas vezes alvo de indagações. Mas, quem vai negar a profundidade de uma borboleta cortando uma tarde quente? Ou, o silvo de um riacho entre pedras?

Talvez, e esse pode ser um dos motivos de um bom número de pessoas não serem afeitas aos poemas, nossas almas sejam tão embrutecidas ao ponto de ser ameno um espetáculo tão profundo e profuso como a vida.

Para a hora em que me chamarem de louca

Muita loucura é sabedoria divina
Para um olho inteligente.
Muita sabedoria, pura loucura.
Mas, como sempre,
A maioria domina:
Se você concorda, é boa gente.
Se nega, um perigo sem cura.
Melhor prender com corrente.

Reducionista seria legar a uma obra tão vasta somente uma perspectiva. Tudo que tenho comentado, aqui nessa coluna, são possibilidades de leitura. Um poema é uma feira livre e numa barraca só encontra-se pitangas, mangas, damascos e cajás…

Angela-Lago, organizadora e tradutora do livro

No Livro das Horas da Emily/Angela-Lago, há muitos tons, pois essa foi a grande ideia da tradutora, ilustradora. Apresentar uma poeta/poetisa em suas muitas nuances, por isso, passeando nos poemas você vai esbarrar em paisagens, divagações sobre o divino, angústias existências, comentários sobre a sociedade e, não poderia faltar, para nossa alegria, observações sobre o amor.

Para a hora da paixão

Diminutos rios – dóceis a algum mar azul.
Meu Cáspio – Tu.

Caso você não tenha a oportunidade de ter acesso a essa edição belíssima de Um livro de horas, não desista de ir conhecer a Emily Dickinson. Há outros títulos mais acessíveis e baratos com a obra traduzida da autora, a poesia da séria e profunda Dickinson, ainda bem, pra sorte nossa.

PS: uso poeta/poetisa junto, pois não há consenso bem definido para o uso no feminino em língua portuguesa dessa nomenclatura.

PS1: estou grato pelo retorno recebido nessa nossa coluna À procura da poesia. Continuem divulgando, compartilhando e nos contem como tem sido a experiência com a leitura de livros de poemas.

Abraços poéticos.

*Talles Azigon é poeta, editor e produtor cultura. Já publicou os livros Três Golpes D’Água e MarOriginal. Gosta de assistir Hora da Aventura, de passear na Floresta do Curió e do banho na Sabiaguaba. À procura da poesia é uma coluna semanal com comentários e indicações de livros, autores e poemas. Leia mais poetas.

 

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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