Ilustração: Jéssica Gabrielle Lima

Por Ayla Andrade*
Ayla Andrade escreve quinzenalmente para o Leituras da Bel. Cronista, escritora e pedra de atiradeira, ela utiliza as palavras para narrar e costurar o cotidiano. Nessa semana, Ayla fala sobre as coisas infindas. Você pode apreciar esse texto enquanto espera o próximo eclipse solar em Fortaleza! Confira:

Dizia eu na crônica passada  sobre as coisas esquecidas, deixadas de lado e do bem que isso pode ou deveria nos fazer. Soltar os pesos, o ar, os ombros.

Acontece que aparentemente não é tão fácil e preciso, eu mesma, me soltar do tema referido, com a ajuda de vocês, que também compartilharam comigo, em conversas informais, os vários objetos e pessoas perdidas na sarjeta da calçada.

Pois bem, esse abandono é assunto recorrente em mim.

E como agosto aparentemente termina próxima semana, tem esse vento que tudo leva e ainda sobrevivemos ao eclipse solar penso que seja hora de encerrar esse tema.

Não me prendo aqui a pessoas ou amores ou ainda a objetos do passado, mas sim a uma lembrança, uma memória, um sentimento do que quer que seja. Do que primeiro vier a sua mente, para que você me entenda, mas que você guarda, você sabe. Ás vezes não sabe para quê, nem aonde guarda, mas em algum momento, a sirene toca e você sabe.

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Veja bem, não falo de memórias da infância, do balanço no jardim, o entardecer na praia, aquele tio que a gente não gosta…

Falo de coisas infindas, as que ficam no caminho, aquelas em que a gente constrói o trilho do trem, a estação, o túnel, a saída do túnel, mas nem sequer chega a sentar no vagão… o que deveria ser, mas nem chegou a estar. E isso vira um não-sei-quê dentro da gente.

Alguns chamam isso de plano, projeto, sonho. Eu, sinceramente, não sei por qual nome chamar. Por falta de nome batizo de “coisas infindas”. O que deveria ser, mas nem chegou a estar. E isso é um incômodo, um engodo que me inquieta a escrita.

Você, leitor, deve se perguntar sobre o que exatamente estou a escrever.

Olha, te digo, do fundo do meu verbo que tento entender essa cor, essa bossa do passado na mente. Esse sentimento que aciono e que me põe a pensar. Que me faz voltar e ver se a porta está mesmo trancada, aquela sensação “será que esqueci algo?”. E sempre chego no mesmo lugar, essa coisa infinda, esse meio do caminho, esse qualquer deixado pra trás.
Pode ser frustração, pode ser a little bitterness, uma nostalgia. Pode ser.

E não que isso seja de todo ruim. O tempo tem esse dom de criar ruínas, de amontoar as lembranças, de nos apressar e então saímos sempre deixando uma peça pra trás, seja por descuido ou por vontade. É desconfortável. E essa peça, que a gente não pode voltar pra pegar parece faltar no quebra-cabeça. E aí está a questão: que agonia ver o jogo finito da vida com uma peça faltando enquanto ainda está valendo a jornada.

Mas isso tudo foi antes de tentar escrever essa crônica e antes do eclipse solar.

Estou na aposta de que começarei um novo quebra-cabeças.

*Ayla Andrade é assistente social, cronista, contista e amante do cotidiano. Ela já publicou o livro Mais feliz dos silêncios (Editora Substânsia, 2014) e publicou contos em algumas antologias, entre elas Encontos e desencontos, Antologia Massanova e O cravo roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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