Por Tetê Macambira*

Outro dia, contaram-me que viram, saindo do cinema onde passara Romeu + Julieta (do Baz Luhrmann, 1996), um rapaz inconformado porque o casal de Verona havia morrido. Ok. Ninguém gosta de spoiler, mas querer assistir a qualquer versão de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, e não esperar que os dois morram tragicamente!
O arquétipo mais cultuado do amor juvenil, do amor impossível permanece vivo em nossos corações.

“O amor procura o amor como o estudante que para a escola corre:num instante. Mas,ao se afastar dele,o amor parece que se transforma em colegial refece.”

Temos a mania do amor impossível, do amor inalcançável; nenhuma boa história de amor é do cotidiano de pagar contas, mas das agruras, das quizilas e tropeços que o amor sofre.
E Shakespeare (Shakes para os íntimos) sabia explorar o gosto popular como ninguém.

Essa atração irresistível que temos pelo amor (eros) inviável a tal ponto que se aproxima da morte (Tanatos) não é novidade no cardápio de narrativas que mais nos apetecem.
“Só ri de uma cicatriz quem nunca foi ferido.”

Que o digam Píramo e Tisbe. Quem foi Píramo e Tisbe? Resuminho aqui!:
Píramo e Tisbe eram filhos de pais muito ricos na cidade onde viviam que se conheceram e resolveram se casar de boa vontade, porém seus pais não permitiam por alguma mas não clara razão. Mas o amor consegue tudo e esses jovens descobriram uma fresta na parede, por onde se falavam diariamente, mas sem contato físico.

Um dia resolveram se encontrar, Tisbe foi ao local combinado, mas se deparou com uma leoa com a boca ensanguentada que acabara de sair da caça e foi beber água na fonte. Tisbe fugiu deixando cair seu véu branco, que, mastigado pela leoa, encharcou-se de sangue.

Logo após o acontecimento, Píramo chegou, mas não encontrou Tisbe, que estava escondida em uma caverna ali perto. Píramo se assustou vendo o véu da amada ensanguentado. Assustado com a ”morte de Tisbe” sacou sua espada e feriu seu próprio coração, se matando. Tisbe, assustada com o ocorrido, correu até Píramo e o socorreu, pegou-o em seu colo e chorou. Com tamanha tristeza, se matou também.

E então?… essa história “lembra” a de Romeu e Juju?… Mas Shakespeare não parafraseou de Ovídio, que escreveu essa historinha singela. Defendem os estudiosos que o nosso bardo inglês deve ter se inspirado (isso naquele tempo, fosse hoje, seria plágio!) nos poemas de Arthur Brooke e Christopher Marlowe.

Cena do filme de 1996

Mas isso nunca foi referendado pelo Shakespeare, então… deixa quieto. Mas o fato é que a história existia, as personagens existiam já com esses nomes. E a pergunta que não quer calar é: por que foi a versão de Shakespeare a que fez sucesso?

Receita de Shakespeare

Shakespeare pode nos parecer muito artificial e difícil de ler, tanto pela sua linguagem quanto pela construção poética de suas peças teatrais.
No entanto, não podemos esquecer duas coisinhas daquela época:

1 – Falavam de forma mais elaborada que nós, hoje;
2 – A maioria dos atores era analfabeta, então, era melhor para eles decorarem peças inteiras em versos do que em diálogo, simplesmente. A poesia sempre facilita o recurso mnemônico (palavreado bonito para memória).

Outro fator que facilita a leitura dessa tragédia é que ela não é 100% tensa, não mantém o leitor à beira do precipício (como em Hamlet, por exemplo), Will alterna momentos de humor e de tragédia, enfatiza as personagens secundárias e muito humanas do Mercúcio e da Ama.

Sem falar que o casal protagonista exalta a “Religião do Amor” – ainda que tenha sido a recatada moça de família, Julieta, quem tenha exigido como prova de amor verdadeiro de Romeu nada mais nada menos que o casamento. E isso depois de mal terem se falado naquela mesma noite!

“Me surpreende pensar que, com uma história meio Romeu e Julieta a gente conseguiu e ainda consegue superar todas as dificuldades e desafios, porque o amor fala mais alto no fim das contas.” [William Shakespeare]

Então, basicamente, para fazer uma peça gostosa e que se mantenha símbolo de sucesso no decorrer dos séculos é simples:

Ingredientes
1 – História comum com final trágico
2 – Jovens de lados opostos (zero explicação dessa oposição)
2 – Personagens secundárias engraçadas
1 – Personagem bem-intencionada e neutra
1 – Inimigo chato mas poderoso
1 – Pitada de magia (ou alguém já ouviu falar nessa poção que te faz entrar em catalepsia?)
1 – Quiproquó

Modo de fazer
Situe os dois jovens em uma mesma e improvável cena
Crie um diálogo divertido e de duplo sentido entre eles
Inverta a ordem natural (tipo quando a moça é quem pede em casório)
Adicione conversas paralelas com as 2 personagens secundárias engraçadas
Cozinhe em fogo baixo com a personagem bem-intencionada e neutra
Flambe uma das personagens engraçadas com o inimigo chato
Acrescente uma pitada de magia e deixe desandar para criar o quiproquó.
Sirva os presuntos quentes e derretendo-se em lágrimas.

E assim Romeu e Julieta nunca morrem, de fato. Porque permanecem vivos na catarse que vivenciamos nas mais diversas versões da considerada melhor e mais popular tragédia de William Shakespeare. Tão abrangente que já atraiu análises além das litero-teatrais, tal como a psicanalítica, feminista e homossexual, sem falar na inspiração que gerou outros livros como Inocência de Visconde de Taunay, e filmes: Georges Méliès (cinema mudo), de George Cukor (1936), Franco Zefirelli (1968) a do já citado Baz Luhrmann. Isso sem comentar muitas paródias, inclusive em quadrinhos da Turma da Mônica.

Um amor irreal que fez uma cidade na Itália, Verona, virar roteiro turístico com a estátua em bronze do jovem casal e com a “Casa da Julieta” – com direito a balcão, claro!

Até hoje uma apresentação teatral de Romeu e Julieta atrai um grande público. Mesmo conhecendo o final trágico, pessoas se emocionam ainda ao vivenciar a morte do jovem casal. O que prova que nem sempre o spoiler estraga; depende da história.

“Estas alegrias violentas têm fins violentos
Falecendo no triunfo, como fogo e pólvora
Que num beijo se consomem.”

Entre no google, digite “Romeu e Julieta” no buscador. Olhe quantos links! Tanta gente falando sobre uma peça shakesperiana – inspirada em uma história da antiguidade grega – não pode ser de graça. Vale a pena ler. E mais recomendável ainda se for com a tradução cuidadosa de Bárbara Heliodora, que era estudiosa de William Shakespeare e da língua inglesa. Ela buscou respeitar o ritmo com que Shakespeare modulava o andamento de seu texto teatral, até porque ele era um autor popular, que nunca se incomodou de se apresentar em feiras e junto ao povo, que o adorava, talvez também por ele respeitar seu público usando uma linguagem que lhe fosse facilmente compreensível.

Romeu e Julieta, indiscutivelmente a peça shakesperiana mais amada de todas, merece ser lida e não somente vista, pois “Partir é uma dor tão doce que eu ficarei dizendo boa noite até amanhã”.

Um artigo interessante pode ser encontrado aqui!

*Tetê Macambira é escritora, revisora e tradutora do francês que lamenta Shakespeare não ter escrito em francês.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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