Svetlana Aleksiévitch


Por Alessandra Jarreta*

“Dizem: ah, mas memórias não são nem história, nem literatura. É só a vida, cheia de lixo e sem a limpeza feita pelas mãos do artista. Nosso cotidiano está repleto da matéria-prima da fala. Esses tijolos estão espalhados por todo lado. Mas os tijolos ainda não são o templo! Para mim é tudo diferente… Justo ali, na calidez da voz humana, no reflexo vivo do passado, está escondida uma alegoria primitiva, e se desvela a intransponível tragicidade da vida. Seus caos e paixão. Seu caráter único e insondável. Ali, eles ainda não foram submetidos a nenhuma elaboração. São originais.” Até ter a sua nomeação no Prêmio Nobel de Literatura em 2015, por sua “escrita polifónica, monumento ao sofrimento e à coragem na nossa época” eu, assim como a maioria das pessoas, nunca tinha ouvido falar de Svetlana Aleksiévitch.

Sua obra ainda não tinha sido publicada no Brasil, e o pouco que se encontrava sobre ela (que não estivesse em russo) dizia apenas que a autora era uma jornalista que gostava de criticar o governo. Foi feito também algum barulho a respeito da sua obra poder ou não ser considerada literária, e se ela era merecedora do prêmio – vozes que foram logo abafadas até quase se calarem. Talvez elas tenham sentido o mesmo nó no estômago que eu senti quando li as primeiras páginas de Vozes de Tchernóbil.

Svetlana, hoje com 69 anos, nasceu em Stanislav (atual Ivano-Frankivsk) na Ucrânia, mas cresceu na Bielorussia, como uma “filha da Vitória”. Todas as pessoas a sua volta estiveram na guerra ou tiveram contato com ela em algum nível, enchendo sua infância de histórias sobre batalhas e morte. Filha de dois professores, estudou jornalismo na Universidade de Minsk e trabalhou em jornais e escolas. A guerra não tem rosto de mulher”, seu primeiro livro, finalizado em 1983, passou dois anos parado em uma editora antes de ser publicado. A autora foi acusada de ser pacifista, naturalista e de sujar as imagens das heroínas, além de anti-comunista e ter uma visão anti-governo, chegando a quase perder seu emprego no jornal.

A guerra não tem rosto de mulher foi o segundo livro que li da autora e, apesar de Vozes de Tchernóbil ter me feito chegar a soluçar, foi o primeiro que mais me marcou. Tchernóbil, apesar de não compreender suas consequências tão a fundo, era uma história que eu conhecia, enquanto a das meninas que pilotavam tanques e aviões e combatiam no front, tendo por vezes a coragem que nenhum outro homem teria, era algo de que eu nunca tinha ouvido falar.

Uma das primeiras coisas que chamam a atenção quando se inicia a leitura é a maneira como a autora monta o livro. Intercalando sua própria história com relatos da guerra (e o trabalho que teve para consegui-los), deixa a sensação no leitor de estar caminhando nessa investigação junto com ela. Você se sente lá, naquelas casas pequenas e frias, tomando um chá com uma senhora que perdeu a conta de quantas vidas salvou. Ou tirou.

Aproximadamente 1 milhão de mulheres lutaram pelo Exército Vermelho durante a segunda guerra mundial mas, como diz o titulo, a guerra não tem cara de mulher. São os homens que contam as histórias, orgulham-se de suas vitórias, condecorações, recebem homenagens. E as mulheres? A garota que volta pra casa com duas Ordens da Glória e várias medalhas é tirada da cama pela mãe ainda cedinho, enquanto todos estão dormindo – “Filhinha, eu fiz uma trouxa para você. Vá embora… Vá embora… Suas duas irmãs menores ainda estão crescendo. Quem vai querer casar com elas? Todo mundo sabe que você passou quatro anos no front, com homens…”

Durante sete anos Svetlana reuniu os relatos dessas mulheres que contam 40 anos depois seus sentimentos de quando ainda eram adolescentes. Para nos fazer compreender melhor como funcionavam essas lembranças, a autora conta quem eram as três pessoas que faziam parte daquela conversa: a pessoa que estava contando, quem ela era e ela. Essas senhoras que estiveram no front recordam como a guerra pode transformar um civil em militar em apenas três dias. As garotas, que antes se orgulhavam de seus longos cabelos trançados, passaram a usar cabelos curtos e carregavam armas maiores do que elas. Mentiam a idade, fugiam de casa para batalhar por um ideal. Como poderiam ficar em casa esperando quando o país precisava de toda ajuda possível?

Vamos ler Svetlana Aleksiévitch

Svetlana Aleksiévitch

O livro conta histórias de vários tipos de experiências de guerra. Das garotas que lavavam os uniformes encharcados de sangue dos soldados às garotas que se tornaram primeiras atiradoras de seus regimentos, àquelas que corriam pelo campo em busca dos membros amputados dos rapazes. Svetlana fala com uma sensibilidade poética sobre a dor da guerra, a sujeira, a fome. Ela dá voz às pessoas e acontecimentos que são apagados dos livros de história, como o sangue da menstruação que suja a neve branca durante a marcha, pois o exercito não tinha preparação alguma para receber garotas. E também das paixões que aconteciam entre as batalhas, e de como as garotas transformavam seus sacos para bagagem em saias, e tentavam fazer cachinhos com o pouco cabelo que lhes restavam.

Depois de escrever tanto sobre o sofrimento humano, a autora atualmente mudou um pouco o foco das suas pesquisas. Um dos seus livros mais recentes, The wonderful deer of the eternal hunt, fala sobre o amor. “Cheguei à conclusão que eu venho escrevendo livros sobre como as pessoas matam uma às outras e como elas morrem. Mas isso não representa a totalidade da vida. Agora estou escrevendo sobre como as pessoas amam umas às outras. E novamente faço as mesmas perguntas, mas desta vez sob a perspectiva do amor: quem somos nós e qual é o país em que vivemos. O amor é o que nos traz ao mundo. Eu quero amar as pessoas, mesmo que esteja cada vez mais difícil amá-las.”

*Alessandra Jarreta é estudante de Letras da UFC, mediadora dos clubes de Leitura Nordestina, Leia Mulheres, Leituras Feministas, Clube do quadrinho e Lendo Clássicos. Escreve quinzenalmente para o Leituras da Bel sobre Mulher e Literatura.

 

 

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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