Mário Quintana

Por Talles Azigon*
Parece – e o Mário Quintana reafirma isso em seu livro Nariz de Vidro – que é necessário experimentar um outro estado de espírito para se viver bem o prazer do poema. Vamos nos debruçar sobre o seguinte poema presente no livro, um dos mais conhecidos de Quintana:

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições…
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
…e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!

Tanta ousadia.

Vejamos, um padre (ou um líder espiritual) usa o discurso religioso com a finalidade principal de conectar o ser humano ao divino. É uma tentativa mística através das palavras. Para Quintana, os poemas mais eficazes, haja vista que ao apelar para o pecado, morte, maldição, promessas, esses líderes causam mais dúvidas, medos, espantos, logo afastamento, do que a purificação da alma para um encontro com o divino.

Durante todo o Nariz de Vidro, Quintana parece querer dizer que a existência moderna –  seus arranha-céus, suas máquinas, livros de ponto, obrigações, amontoamentos – nos afasta de maneira brusca de qualquer experiência religiosa, transcendente, ou, caso você não goste desses termos, poética da vida.

Daí uma das principais desutilidades da poesia, fazer parar um pouco, segundos que seja, a roda do mundo, abrindo um baú de espantos, recuperando vida das mãos de um dos nossos principais inimigos, o tempo.

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda…

O barulho das máquinas, as gentes fluindo nas ruas, as velocidades, iludem nossos sentidos, acobertam os acontecimentos. O poeta, ao contrário do que pensam os mais românticos, não se aparta disso tudo. Contudo, seu modo de olhar desafina o ritmo da cidade. Esse desafinar é uma das primeiras percepções que temos ao ler Quintana.

Ele diminui os ruídos, os passos, para pontuar no mapa da cidade. Sem um tempo linear, quais acontecimentos são capazes de roubar do nosso inimigo tempo um pouco de vida? Acontecimentos triviais e extraordinários, como um anjo tocando flautim no telhado sob a chuva da madrugada, uma rã olhando seu reflexo em uma poça d’água, o velho Leon Tolstói fugindo de casa aos 80 anos.

Leia Mário Quintana:

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos 
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,
Contra uma parede nua…
Sentou-se… e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A Morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância


Nessa nossa realidade, aparentemente o maior ato de rebeldia é simplesmente parar, ver, ouvi, tocar, sentir. Quintana nos convida a esse tipo de vandalismo poético.

Amém.

*Talles Azigon é poeta, editor e produtor cultura. Já publicou os livros Três Golpes D’Água e MarOriginal. Gosta de assistir Hora da Aventura, de passear na Floresta do Curió e do banho na Sabiaguaba. À procura da poesia é uma coluna semanal com comentários e indicações de livros, autores e poemas. Leia mais poetas.

 

 

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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