Por Talles Azigon*

América

Sou apenas um homem
Um homem pequenino a beira de um rio.
Vejo as águas que passam e não as compreendo.

Diante tantos poemas desse livro, talvez justamente sejam esses versos – não os mais lembrados ou conhecido de Drummond – uma síntese, mesmo sendo pobre todas as sínteses. São nesses versos que Carlos reconhece diante do mundo grande, o mundo cheio de países lutando para constituir o próximo império, sua quase completa insignificância.

Entretanto não nos precipitemos, ser tão pequenos não significa estarmos isentos dos crimes da terra, seja os globais em formato de guerra, seja os locais, materializado, por exemplo, no triste caso do leiteiro.

Nosso pobre leiteiro:

morador da rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão

dedica todo os dias a sua árdua tarefa de levar:

leite bom pra gente ruim

Apenas um outro da massa de trabalhadores desse País, mais um alguém tão invisível, agindo na surdina, antes que os donos dos casarios acordem e sejam incomodados pela desagradável imagem de um miserável trabalhador em sua labuta diária.

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Uma rosa de Drummond para nossos tempos

É nesse instante que o senhor médio se assusta, pois as pessoas médias não têm paz. Sempre atormentadas pelo medo de perderem seu patrimônio mediano, e do susto acordado, confunde o leiteiro com um perigo, saca de sua arma e comete o atroz crime de interromper uma vida tão jovem, de amores futuros, de sonhos futuros.

Carlos Drummonde Andrade

A rosa do povo é um livro de denúncias. Drummond também sendo um brasileiro médio, funcionário público, de uma família com posses, sabe onde está entranhado o mal. Numa classe mediana apavorada, sempre desejosa de perpetuar o colonialismo, que tem a propriedade como um bem mais precioso do que a vida, que não consegue amar, complexada com o gênero feminino tão bem retratado no poema O Mito.

É sobre essa gente média brasileira, herdeiras do gado, e do minério, o grande assunto de A rosa do povo. Essa gente que continua matando jovens inocentes pois estão imersas em um medo ilógico. Esse já seria motivo suficiente para começar a ler hoje mesmo esse livro necessário.

*Talles Azigon é poeta, editor e produtor cultura. Já publicou os livros Três Golpes D’Água e MarOriginal. Gosta de assistir Hora da Aventura, de passear na Floresta do Curió e do banho na Sabiaguaba. À procura da poesia é uma coluna semanal com comentários e indicações de livros, autores e poemas. Leia mais poetas.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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