Por Sarah Forte Diogo*
“Diz-se que era o dia do valente não ser; ou que o poder, aos tombos dosdados, emana do inesperado; ou que, vezes, a gente em si faz feitiços fortes, semnem saber, por dentro da mente.” (Guimarães Rosa).
O fragmento que abre este breve ensaio foi retirado da narrativa “Estória no 3”, constante em Tutaméia – terceiras estórias. O conto apresenta como episódio principal um personagem que rompe o crânio de outro com um machado. Esse ato de violência anula a existência do outro. O excerto nos faz refletir sobre a violência enquanto um processo que tem sua ocorrência marcada pelo selo do espanto: ela impressiona, assusta, chama a atenção, surge revestida, aparentemente, de impulso e irracionalidade.
Dentro da economia narrativa, o personagem de nome curioso – Joãoquerque – que nos faz pensar em João quer o quê? – vive acossado pelo medo do cruel Ipanemão, espécie de valentão arruaceiro. Até que o narrador roseano resolve captar João em seu fugidio momento de coragem, que lhe transtorna e transforma toda sua trajetória: o espetáculo da morte alheia, a violência. Munido de um machado, João declara sua independência do medo sob o signo do ato: é a violência que lhe confere autonomia, liberdade e, para além disso tudo, libertação.
Interessante destacarmos que o escritor mineiro Guimarães Rosa relacionou e muito sertão e violência. O sertão por vezes surge em suas obras não somente como espaço de eclosão da violência, mas como instância capaz de gerá-la, alimentá-la, permitir que ela se instaure como num reino sem limites, onde a desordem converte-se em única ordem possível, onde o desmando é a lei respeitada. Esses sertões não são novidades para o leitor brasileiro. Lembremo-nos dos sertões de José de Alencar e Euclides da Cunha. Neles já campeiam as violências e suas múltiplas possibilidades de liberdade e exaustão.
Em Rosa, é de ressaltar o desfile de vozes que, caso não fosse a literatura, permaneceriam silenciadas: vejamos Grande Sertão: Veredas e seus jagunços, os questionamentos acerca da existência do Diabo, ampliados para a compreensão de que o Diabo existe é “no coração de gente – o escuro, escuros”.
Notamos que o irromper da violência articula-se tanto a uma leitura do Brasil ruralainda não integrado ao contexto da modernização, quanto a uma consciência da linguagem e seus modos e limites de representação. Além de questionar o papel de valentões e apresentar a violência como a única forma possível de libertação em algumas narrativas, Guimarães Rosa, questiona, por exemplo, o próprio modo de representar ficcionalmente tais limites, constituindo, assim, uma linguagem compromissada com as potencialidades do elemento linguístico.
*Sarah Forte Diogo é doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece)